Hoje na Sábado escrevo sobre Astronomia, a autobiografia de Mário Cláudio (n. 1941). É enorme a quota de romances biográficos, em todas as épocas e literaturas. Mais raro é que uma autobiografia assuma o protocolo do romance e como tal seja publicada. Também se pode colocar a questão ao contrário: um romance que, de forma ostensiva, decalca a biografia do autor. É o que sucede em Astronomia. Omitindo nomes, datas e locais, o autor transforma a sua vida num romance. Dividido em três núcleos, Astronomia inverte a designação dos narradores: Velho, Rapaz e Menino. O primeiro fala da remota infância (casa, rituais de família, medos); o segundo faz o inventário dos dias atribulados da idade adulta (identidade sexual, serviço militar, carreira literária); e o terceiro expõe sem rebuço as agruras da velhice. Um leitor familiarizado com a cena literária não terá dificuldade em identificar vários autores contemporâneos. Dois exemplos: Eugénio de Andrade, «príncipe dos poetas nacionais» e inspector da Segurança Social (Cláudio e Andrade foram colegas na mesma repartição); e David Mourão-Ferreira, «impropenso aos efebos pindários [porém] entusiástico cultor da frequência das cortesãs…» Há mais. Mas nem todos gozam de grau de afecto equivalente. E ainda os de subtexto, como acontece com o dramaturgo britânico Joe Orton. As citações, em verso e prosa, intercalam obras do autor com a de terceiros: os irmãos Grimm, Perrault, Carroll, Proust, Wordsworth, Rabelais, Milton, Píndaro, Camões, Sena, Blake, Álvaro de Campos e outros. Diversa iconografia pontua a passagem do tempo. Astronomia é a fala de um homem que se conta. A meninice na casa ancestral, fobias, rezas, jogos de criadas; o momento em que o rapaz encontra outro rapaz vindo dos «nevoeiros nórdicos», doravante nomeado como namorado; a deriva hippie; a guerra em África com o seu cortejo de horrores («heróis que esmagam a cabeça dos meninos no capot do Unimog…») no intervalo de orgias homossexuais; a queda da ditadura e os estrangeirados; as sessões de psicanálise em Lisboa; escatologia pessoal; a passagem por serviços sob tutela da secretaria de Estado da Cultura; manual de como sobreviver no Meio literário; o dogma dos incontornáveis (em regra autores «que ninguém lê...»), o crítico pensante fautor de pactos e cumplicidades que fazem e desfazem reputações «com rapidez apenas equiparável à da cópula dos coelhos…»; viagens, tédio, fétiches, consagração, rotinas. A escrita barroca mantém a tensão do relato bem calibrada. O sarcasmo faz o resto. Quatro estrelas.
Escrevo ainda sobre Bronco Angel, o Cow-Boy Analfabeto, de Fernando Assis Pacheco (1937-1995), aliás William Faulkinway, híbrido de Faulkner e Hemingway. Foi no jornal humorístico O Bisnau, entre Março e Outubro de 1983, que o folhetim foi publicado. Com este livrinho, a Tinta da China dá início à publicação de toda a obra do autor, notabilíssimo poeta, mas também ficcionista, crítico literário, cronista e jornalista. Bronco Angel, o Cow-Boy Analfabeto são vinte e oito sketches bem escarolados que parodiam o Portugal da primeira metade dos anos 1980. Aqui e ali, referências directas a personalidades da vida política e social: Santana Lopes, Maria João Avillez, Pinto da Costa, Nuno Abecasis, Alberto João Jardim, Helena Roseta, etc., sem esquecer «os índios Lukaspiris». A sucessão de erros ortográficos dá o tom da irrisão: «Nem a copiar pelo formulário assertas, meu çacana! Olha lá, o teu pai não te mandou ao menos aprender as vogais?» Em suma, um divertissement na melhor tradição da zombaria indígena. O volume tem edição e prefácio de Carlos Vaz Marques e ilustrações inéditas de João Fazenda. Três estrelas.