Hoje na Sábado.
Lawrence Ferlinghetti fez cem anos em Março de 2019, data que assinalou com o romance autobiográfico Rapazinho, no qual revela a sua atribulada infância com a tia Émilie, que o levou ainda criança para Estrasburgo, o regresso a Nova Iorque, a vida em casa dos Bisland, o colégio, a Marinha de Guerra, a passagem pelas ruínas de Nagasaki, a nostalgia de Paris, o salto para a Califórnia, etc. Poeta, escritor, livreiro, editor e artista plástico, Ferlinghetti deu a conhecer ao mundo a Geração Beat (Ginsberg, Kerouac e outros), foi julgado por obscenidade, tornou-se o símbolo de todas as transgressões, vendeu um milhão de exemplares do seu livro de poesia A Coney Island of the Mind (1958) e, em 1998, foi nomeado Poet Laureate. Em Rapazinho, o mais impressionante é a vitalidade da prosa, o testamento de um grande autor. Admirável. Publicou a Quetzal.
Pouca gente se lembra hoje da inglesa Anna Kavan (1901-1968), morta por overdose de heroína, cuja última e mais conhecida obra, Gelo, agora traduzida, antecipa uma era pós-nuclear centrada em alterações climáticas. O mundo está a ser engolido pelo gelo e a catástrofe traz com ela o autoritarismo: «Além do mais, não há transportes, a não ser para entidades oficiais.» Não sabemos onde isto acontece, nem com quem (o narrador não tem nome), sabemos apenas que há controlo militarizado. Será o colapso da sociedade uma metáfora da disfunção psicossocial da autora? Publicou a Cavalo de Ferro.
História da Violência, do francês Édouard Louis (n. 1992), é o romance de um estupro na noite de Natal. Narrado na primeira pessoa, o livro descreve a violação do autor pelo cabila com quem passou essa noite. A partir do comportamento da irmã, amigos, médicos e polícias, Édouard Louis analisa preconceitos de classe, xenofobia e homofobia, bem como as sequelas da descolonização da Argélia. Publicou a Elsinore.
O penúltimo romance do austríaco Robert Seethaler (n. 1966), Uma Vida Inteira, é uma viagem pelo século XX. Andreas Egger passou por tudo: brutalizado em rapaz pelo parente que o adoptou, fisicamente diminuído, prisioneiro de guerra, operário, guia turístico da região onde mais sofreu, nem por isso perde a esperança e o sentido de humor. Numa linguagem isenta de ênfase, Seethaler faz o relato comovente de uma vida. Publicou a Porto Editora.
A literatura está cheia de personagens com quem crescemos. Alberto Manguel (n. 1948) chama-lhes amigos literários. Juntou-os em Monstros Fabulosos, espécie de dicionário com 38 entradas: Capuchinho Vermelho, Fausto, Super-Homem e outros. Selecção criteriosa, da Bíblia à banda desenhada, passando por Eça de Queirós, pela mitologia e por contos infantis. Ensaios breves, eruditos, ecoando memórias pessoais. Um belo companion de leitura. Publicou a Tinta da China.
A história de dois ordenhadores de 17 anos que são recrutados pelas Waffen-SS é o tema de Morrer na Primavera, romance do alemão Ralf Rothmann (n. 1953). Não obstante a marca autobiográfica, o leitor lembra-se do facto de Günter Grass ter sido recrutado com a mesma idade por aquela divisão do exército nazi. Culpa é o sentimento dominante: Walter, o narrador, vê-se obrigado a fuzilar o melhor amigo. Para quê? Quando a guerra acaba, a ordenha é feita por máquinas. Publicou a Sextante.
Ilustrar a vida de uma dúzia de escritoras com opiniões fortes é o propósito da jornalista canadiana Michelle Dean (n. 1979), que escolheu Dorothy Parker, Rebecca West, Zora Neale Hurston, Hannah Arendt, Mary McCarthy, Susan Sontag, Pauline Kael, Joan Didion, Nora Ephron, Lillian Hellman, Renata Adler e Janet Malcolm para escrever De Língua Afiada. O layout da edição portuguesa faz supor que se trata de uma colectânea de textos das referidas autoras. Não é. Como o subtítulo indica — Mulheres que fizeram da opinião uma arte —, trata-se de um ensaio biográfico sobre mulheres que marcaram a cena literária. O livro acompanha a onda actual do movimento feminista, embora muitas delas tenham estado em rota de colisão «com as posições políticas do feminismo…» Publicou a Quetzal.
Um dos aspectos menos conhecidos do Holocausto diz respeito à destruição de livros hebraicos. Esse desconhecimento foi ultrapassado com a publicação de Os Homens Que Salvavam Livros, do historiador David E. Fishman (n. 1957). A ocupação da Polónia e da Lituânia, pelos nazis e pelos soviéticos, é o foco do livro. Fishman dá a conhecer os homens e mulheres que fizeram a “Brigada do Papel” no gueto de Vilnius. Além de mapas, o volume inclui portfolio fotográfico. Publicou a Presença.
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