Hoje na Sábado escrevo sobre o segundo volume das obras completas de Maria Judite de Carvalho (1921-1998), contista e cronista de excepção. É importante que a obra da autora esteja a ser reeditada. Este volume colige duas colectâneas de contos — Paisagem Sem Barcos, 1963, O Seu Amor Por Etel, 1967 — e uma novela, Os Armários Vazios, 1966. Os acidentes biográficos talvez expliquem a rigidez do seu universo ficcional. Vivendo os pais na Bélgica, nasceu em Lisboa por acaso. Longe dos pais, foi educada por tias em ambiente austero. Mais tarde, acompanhou Urbano Tavares Rodrigues, seu marido, num exílio de vários anos em França. A partir de 1959, ano em publicou o primeiro livro, a colectânea de contos Tanta Gente, Mariana (a mais aclamada das suas obras), fixou por direito próprio o lugar que ocupa na Literatura portuguesa. Personalidade apagada, um tanto por contraponto ao perfil mundano do marido, escritor mediático e activista político, outro tanto por motivos de saúde (chegando nos últimos anos à deformação física), a obra reflecte o imaginário recalcado, cinzento, mesquinho e acomodado da sociedade portuguesa dos anos 1950 e 1960: «Uma amálgama de acontecimentos sem interesse e sem sentido.» Em contrapartida, a escrita da autora não tem nada de inócua. Bem pelo contrário. Numa prosa só na aparência desprendida, dominando bem os monólogos interiores, Maria Judite de Carvalho capta as subtis harmónicas do quotidiano, o espírito peganhento do tempo a enredar vidas sem horizonte, o confronto com outras realidades: «O Times é um jornal sério, não mente nem peca por omissão.» A novela Os Armários Vazios faz o retrato nítido do Portugal salazarista visto sob o ângulo da pequena-burguesia urbana, a pobreza envergonhada de Dora Rosário, «viúva de carreira», fumando um cigarro depois do café, vestida de preto durante dez anos, até ao dia em que a sogra lhe disse que o filho pensava viver com outra. Traços distintivos do meio em que Dora se movia, como abulia, resignação e preconceito, são descritos com sarcasmo. À beira dos 40, Dora muda a imagem. A filha fez o liceu, aprendeu línguas, podia perfeitamente ser hospedeira da TAP. O desfecho é absolut sixties. Quatro estrelas. Publicou a Minotauro.
Escrevo ainda sobre a obra mais recente do filósofo e ensaísta alemão Martin Puchner (n. 1969), O Mundo da Escrita. O subtítulo dá a medida da ambição: O poder das histórias que formaram os povos e as civilizações. Especialista em vanguardas e professor em Harvard, Puchner escreveu esta história da literatura universal dos primórdios — Épico de Gilgames, Homero, Bíblia hebraica, etc. — às novas tecnologias da escrita, como propiciadas pela Internet, passando pelo «puré medieval» com que J.K. Rowling molda a saga Harry Potter… Numa prosa envolvente, doseando erudição, humor e uma quota de imprevisto (a introdução aborda alguns aspectos da missão Apollo 8), Puchner faz close reading de obras que são património da humanidade. Entre outros, Cervantes, Goethe, Marx, Akhmátova, Soljenítsin e Walcott são apresentados com brilho. O fio condutor une As Mil e Uma Noites com a literatura pós-colonial, sem ignorar o contexto político de cada época. Uma obra indispensável, que inclui portfolio fotográfico. Cinco estrelas. Publicou a Temas e Debates.