Hoje na Sábado escrevo sobre O Quarto de Marte, o romance mais recente de Rachel Kushner (n. 1968). O marketing tomou conta da literatura. Autora de três romances e uma colectânea de contos, a autora foi comparada a Dickens. Não havia necessidade. Com o apoio de James Wood, Jonathan Franzen, George Saunders e outros, passa bem sem os ditirambos. Quem quiser conhecer alguma coisa acerca do sistema prisional da Califórnia, deve ler o livro. Não se assuste com o título, é apenas o nome de um clube de lap dance. Sobre prisões, Ms Kushner terá investigado tudo o que havia para investigar. O resultado não é exaltante, pese embora o excepcional conseguimento da tradução de José Miguel Silva. Romy Leslie Hall, a protagonista, tem 29 anos. Em 2003 ainda cumpre duas ‘perpétuas’ na penitenciária feminina de Stanville. O inventário dos procedimentos é um empecilho, mas os relatos em flashback, em especial os episódios de sexo, estão bem esgalhados. Romy destaca-se das mulheres que compõem o universo prisional. Quem leu Orange Is the New Black: My Year in a Women’s Prison (2010), o livro de memórias da lésbica radical-chic Piper Kerman, acusada de tráfico de drogas e fraude fiscal, conhece a fonte de Ms Kushner, colaboradora de revistas selectas, como New Yorker ou Paris Review e, portanto, merecedora de todos os créditos. A estrutura narrativa apoia-se numa sucessão de histórias almodóvarianas em clave americana, como as que vimos na série da Netflix feita a partir do livro de Piper Kerman. O ponto é esse: com todos os seus pergaminhos literários, Ms Kushner não acrescenta nada ao já lido e visto sobre wrong gender, mulheres abusadas e violência extrema do sistema policial e penitenciário (as mulheres são quase todas negras e pobres). Lyndon B. Johnson, o presidente que jurou a Constituição ao lado do corpo de Kennedy, e Richard Nixon, o presidente demitido após o Caso Watergate, fazem parte da intriga, o primeiro por causa de chuveiros genitais, o segundo a pretexto de música country. E também Dostoievski, presumo que para dar espessura. Três estrelas. Publicou a Relógio d’Água.
Escrevo ainda sobre O Sonho de Bruno, de Iris Murdoch (1919-1999), romancista e académica na área da filosofia. As questões morais foram sempre decisivas na obra. O Sonho de Bruno, um dos seus romances mais aclamados, foi agora publicado. Narrado na terceira pessoa, conta a história de Bruno, um homem de idade avançada deformado pela doença: «Ele sabia que se tornara um monstro.» Espera pela morte em casa de Danby, o genro viúvo. Intriga em família, portanto. À beira da morte, tudo gira em torno da essência da vida. Bruno tem duas obsessões: aranhas e selos. Estudou as primeiras, coleccionou os segundos. Faz vista grossa à aversão que suscita, em particular na enfermeira e na empregada doméstica, mas continua a preocupar-se com os impostos (a quem doar a colecção de selos?). A narrativa apoia-se num compósito de doença, sexo, traição, arrivismo, segredos e acidentes naturais. Fora do huis clos, o filho Miles, de quem Bruno se afastou no dia em que o viu casar com uma indiana, que entretanto morreu. Sem surpresa, Murdoch manipula tudo de forma admirável. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.