A morte de Philip Roth faz descer o pano sobre uma época prodigiosa da literatura de língua inglesa e, em particular, da cultura americana. Os leitores que durante 50 anos fizeram dos seus livros motivo de júbilo, controvérsia ou mero prazer do texto, sabem que agora acabou. Para sermos exactos, tinha acabado em 2010, ano em que Némesis chegou às livrarias.
Para um homem que tanto escreveu sobre doença e morte, chegou a sua vez. Internado num hospital de Manhattan, Roth morreu a noite passada, vítima de insuficiência cardíaca congestiva. A notícia veio pela boca de Judith Thurman, amiga íntima. Conseguiu ser o último e mais prolífico sobrevivente dos escritores que formataram o século XX americano, sendo os outros Saul Bellow e John Updike.
Natural de Newark, onde nasceu a 19 de Março de 1933, Roth foi criado no bairro de Weequahic, bastião da comunidade judaica da cidade. Os pais eram judeus oriundos da Ucrânia, e o futuro escritor teve uma educação de classe média, segundo o padrão americano, com respeito da tradição: «Segundo a nossa doutrina, a família judaica era um refúgio inviolável contra todos os tipos de ameaça, do ostracismo individual à hostilidade dos gentios», diz ele na sua autobiografia, Os Factos. Após frequentar a High School local, Roth foi para Lewisburg, na Pensilvânia, formando-se em Inglês na Bucknell University. Era o percurso óbvio do filho de um corretor de seguros. A pós-graduação em Literatura Inglesa já seria feita em Chicago, de onde se viu obrigado a partir para cumprir dois anos de serviço militar.
Como muitos escritores jovens, Roth começou por escrever em jornais, quase sempre críticas de cinema encomendadas por The New Republic. O primeiro livro, a colectânea de contos Goodbye Columbus, saiu em 1959. Com ele ganhou o National Book Award, o primeiro de muitos prémios de uma longa carreira. A consagração planetária chegaria dez anos mais tarde, com a publicação de O Complexo de Portnoy, romance de 1969 que, sob a capa da psicanálise, põe em pauta a masturbação masculina. Da parte de um escritor ‘sério’, era a primeira vez que isso se fazia com tal soma de pormenores. A luva de baseboll como instrumento masturbatório é hoje um ícone da indústria pornográfica gay. (Curiosa ironia sobre um autor alegadamente homofóbico.) Para já não falar do intercourse num naco de fígado cru. Estudiosos da Cabala colocaram o livro no Index. Instalada a polémica, Roth viu-se de um momento para o outro investido na qualidade de guru do sexo livre. Convém não esquecer que o lançamento do livro coincidiu com o movimento da contracultura hippie. Tendo o livro saído em Janeiro, é provável que grande parte do meio milhão de participantes do encontro de Woodstock, realizado em Agosto, já tivesse ouvido falar dele, ou mesmo lido. Nada que fosse estranho ao autor, que chegou a escrever um monólogo, entretanto posto de lado, para o musical libertário Oh! Calcutá!, estreado na Broadway justamente em 1969.
Ao contrário de tantos dos seus pares, Roth nunca se preocupou em escrever para agradar. «A literatura não é um concurso de beleza moral», disse em 1984 à revista Paris Review. Portanto, tinha por princípio desenvolver assuntos que inquietassem o senso comum. Isso é notório a partir da altura em que cria a personagem de Nathan Zuckerman, o sulfuroso alter-ego que em nove romances retratou a América sem piedade. A série começa em 1979, com O Escritor Fantasma, e termina em 2007, com O Fantasma Sai de Cena. Estão todos traduzidos em Portugal, embora não pela ordem dos originais. A série não começou da melhor maneira, porquanto Anne Frank, travestida de Amy Bellett, entra no plot. A heresia provocou ondas de choque entre os judeus ortodoxos das elites da Costa Leste e, coincidência ou não, o anunciado Pulitzer foi parar às mãos de Norman Mailer. De nada valeu a Roth insistir na dicotomia entre autor e narrador. O prémio chegaria dezoito anos mais tarde, consagrando Pastoral Americana, o sexto romance ‘de’ Zuckerman.
O interesse de Roth pela história americana foi sempre uma constante. A denúncia do MacCartismo deu corpo a Casei com um Comunista (1998), tal como A Mancha Humana (2000) surgiu na sequência do escândalo Lewinsky, a trapalhada que ia custando a presidência de Bill Clinton: «Foi o Verão da América em que a náusea regressou, em que as chalaças não pararam […] Foi o Verão em que o pénis de um presidente esteve na cabeça de toda a gente e a vida, em toda a sua despudorada obscenidade, confundiu uma vez mais a América.» Quem apenas viu o filme que Benton fez em 2003 a partir do livro, não tem noção do ímpeto vitriólico do romance. Outro aspecto interessante releva do facto de Roth ter escrito algumas das suas obras mais significativas depois dos 65 anos, como acontece com cinco livros aqui citados, mas também com A Conspiração Contra a América (2004) e Indignação (2008), entre outros, evidentemente.
Sexo, doença, morte, identidade judaica, anti-semitismo, puritanismo middle class, meio literário, relação com os pais, foram os seus temas de eleição. Os leitores mantiveram-se fiéis. Os pares também. A Corporação fez o que devia: Roth venceu um Pulitzer de ficção, dois National Book Awards, dois National Book Critics Circle, três PEN-Faulkner, um Man Booker International Prize, um Príncipe das Astúrias classe de Letras, e mais uma dúzia. Verdade que falhou o Nobel, mas isso só lhe fica bem. Tolstói, Proust, Joyce, Woolf (Virginia) e Nabokov não fazem parte da lista de laureados, e nem por isso deixam de ter a importância que têm.
Uma das duas mulheres com quem esteve casado foi a actriz inglesa Claire Bloom. Viveram juntos a partir de 1976, casaram em 1990, mas o casamento durou apenas quatro anos. Ela foi corrosiva nas memórias que publicou depois do divórcio. Virá daí a má-vontade das feministas contra Roth? Do lado masculino também houve reticências: por exemplo, o crítico Frank Kermode escreveu na New York Review of Books que Roth só conseguia escrever com erecção. Se era assim, aproveitou bem as ocasiões.
Texto publicado anteontem na edição online da revista Sábado. Clique na imagem.