segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

CONTO DE NATAL


Escrevi este conto de Natal em 2008, para o volume colectivo Um Natal Assim. Transcrevo alguns breves excertos:

«João Pedro tinha apenas doze anos mas sabia exactamente o que queria. E o que queria era passar o Natal longe do pai. O pai nunca lhe tinha feito mal. Pelo contrário. Quando estava em casa dele, o que sempre acontecia no início das férias grandes, logo a seguir aos exames, o pai até o deixava assistir aos treinos de esgrima. E uma das coisas de que João Pedro gostava era de brincar sozinho com os floretes. Vestia a elegante jaqueta acolchoada que lhe ficava a dançar no corpo, punha a máscara metálica (que bem se via através dela) e zurzia o ar. Um dia, apanhado em flagrante pelo Mustafá, golpeou a bonita otomana forrada de chintz que ocupava o canto poente do escritório. Mas o ajudante de motorista fez de conta. Entrou e saiu calado, sorriso enigmático nos lábios, depois de recolher um dossier em pele de crocodilo que o pai deixara esquecido em cima do tampo da secretária. [...]

Repetir a experiência do último Natal com o pai era o que menos lhe interessava. Dessa vez, para impressionar uns suíços de visita à plantação, o pai tinha organizado um safari numa reserva selvagem que a companhia mantinha, em regime de coutada privada, trezentos quilómetros a norte. As avionetas andaram toda a manhã num corrupio entre a plantação e Mokaputa. João Pedro não tinha memória de um Natal tão quente. As ventoinhas de pá dos bungalows e do pavilhão principal de nada valiam. Um bafo pegajoso tomava conta de tudo. João Pedro lembrava-se de ver os jarros cheios de mazagrã a embaciarem em cima dos sideboards de pau-rosa e latão.

Mokaputa estava preparada para receber convidados. Em número de seis, os bungalows alinhavam-se cerca de cem metros à esquerda do pavilhão principal, uma construção maciça dominada pelo imponente tecto de colmo. Era lá que ficava o escritório da administração e a casa-forte das armas, instalada na pequena cave equipada com transmissores de rádio. No outro extremo do piso térreo ficava a cozinha, a copa, três despensas e a garrafeira. O átrio que separava o escritório da administração dessa área de serviço tinha o pé-direito alto e uma escada de madeira que levava ao mezanino. Tal como João Pedro sempre o conhecera, era igual a muitas salas de leilão: tapetes, duas estantes, sofás, cadeirões, banquetas, mesinhas, candeeiros, vasos de porcelana chinesa, tudo desirmanado, numa desordem não isenta de conforto. João Pedro gostava especialmente de uma cadeira em aço e pele, com as costas inclinadas, onde costumava sentar-se a olhar o tecto e a sonhar com trapezistas. No mezanino ficava o bar e a varanda interior utilizada para almoços e jantares.

O pequeno-almoço era servido muito cedo, ao ar livre. Para obviar ao cacimbo, a mesa era posta debaixo de um grande toldo de lona. João Pedro lembrava-se como se tivesse sido na véspera: o grito irrepetível de Cosima Fürchtegott quando vira surgir da vegetação uma leoa rugindo sottovoce. O enfado da bicha era evidente, mas, com o imprevisto e o susto, por um triz João Pedro não cuspiu o porridge. Hieráticos, Mauser em riste, dois sipaios zelavam no corredor de gravilha que os separava da orla do mato onde o animal ensaiava uma coreografia de volteios. O pai riu-se. Tinha conseguido o efeito desejado. Quando regressassem à casa de Stresa, os Fürchtegott teriam muito que contar. João Pedro não achou graça ao episódio. E estava decidido a impedir que se repetisse. [...]»

Eduardo Pitta, O estratagema, in UM NATAL ASSIM, Lisboa: QuidNovi, 2008.

INTERCAMPUS


Se as eleições fossem hoje... Estudo da Intercampus para o Negócios e o Correio da Manhã.

As dezenas de candidatos a líderes do CDS têm pela frente a tarefa de decidir se o partido terá formato Uber ou MyTaxi. A alternativa já se percebeu qual será.

Clique no gráfico do Negócios.

domingo, 22 de dezembro de 2019

LIVROS 2019


Deixo aqui as minhas escolhas, acompanhadas de breves notas de leitura.

No Armário do Vaticano — Para dar a conhecer o dark side do Vaticano, o francês Frédéric Martel encarregou oitenta investigadores espalhados por cerca de quarenta países para entrevistaram mil e quinhentas pessoas. Ele próprio entrevistou 41 cardeais, 52 bispos, 45 núncios apostólicos, mais de 200 padres e seminaristas, além de embaixadores, adidos de imprensa, funcionários do Vaticano e membros da Guarda Suíça. Dividido em quatro partes, o livro aborda o pontificado de vários Papas, as lutas pelo poder, as correntes ideológicas, o predomínio da extrema-direita no pontificado de João Paulo II, a guerra movida por Roma aos defensores da Teologia da Libertação, as idiossincrasias da Igreja em África e na América Latina, a ‘ditadura’ da Congregação para a Doutrina da Fé, a vida dupla de centenas de padres de todos os escalões hierárquicos, os excessos do cardeal guineense Robert Sarah, a biografia mirabolante do cardeal colombiano Alfonso López Trujillo, corrupção e escândalos financeiros na Santa Sé, a reiterada indiferença de Bento XVI face aos relatórios sobre abuso de menores, a clínica Gemelli, onde altos dignitários da Igreja são discretamente tratados de Sida, o assédio sexual aos membros da Guarda Suíça, o outing do teólogo Krzysztof Charamsa, a protecção de padres pedófilos, a relação particular de Bento XVI com Georg Gänswein, seu secretário (sagrado arcebispo no dia em que Ratzinger renunciou ao Papado), e outros temas quentes. Um documento para a História. Publicou a Sextante.

Churchill. Caminhando com o Destino — O historiador inglês Andrew Roberts escreveu uma nova biografia de Churchill. O título remete para um discurso feito em 1940 pelo antigo primeiro-ministro britânico. Em cerca de mil e duzentas páginas, Andrew Roberts traça o retrato do maior estadista britânico de todos os tempos. Com a vantagem de, relativamente a anteriores biografias, divulgar informação até agora classificada. Imprescindível. Volume de capa dura, com portfolio fotográfico, notas e o indispensável índice onomástico. Publicou a Texto.

Regresso a Reims — A partir das suas origens proletárias, o sociólogo francês Didier Eribon, biógrafo de Foucault, analisa as relações no seio da família, a vergonha social, a construção de identidades e, tema central, a traição de classe. Mas também algumas das razões que levaram os operários franceses a trocar o Partido Comunista por Le Pen. A morte do pai serve de pretexto à catarse. Homossexual assumido, teórico da cultura gay, o autor regressa aos lugares da infância e adolescência para desatar o nó górdio dos equívocos. Não é amável. Publicou a Dom Quixote.

As Três Irmãs Soong — Depois de ter escrito as biografias de Tzu Hsi, a imperatriz viúva conhecida por Cixi, e a de Mao Tse-tung, a chinesa (naturalizada britânica) Jung Chang escreveu agora sobre a vida das três irmãs Soong: a mais velha, a mais nova e a vermelha. Educadas nos Estados Unidos, as três foram muito influentes em campos políticos opostos. A mais velha tornou-se uma das mulheres mais ricas da China e fez do marido primeiro-ministro. A mais nova casou com Chiang Kai-shek. E a vermelha foi vice-presidente de Mao. Jung Chang, que tem uma escrita aliciante, consegue fazer-nos mergulhar no universo da política chinesa. Muito bem documentado, o livro é um tour d’horizon pelo século XX, incluindo notas, portfolio fotográfico e, naturalmente, índice remissivo. Publicou a Quetzal.

Dunbar e As Suas Filhas — A mais negra tragédia familiar de Shakespeare, O Rei Lear, chega às nossas mãos em versão contemporânea. Quem o fez foi Edward St Aubyn, o romancista de língua inglesa mais fulgurante da sua geração (nasceu em 1960). Quem leu essa obra-prima absoluta que é o quinteto Melrose, sabe do que falo. Nascido e educado no seio das classes altas inglesas, St Aubyn conhece por dentro o âmago das relações de poder, dentro e fora da família. Transformar Lear em Henry Dunbar, 80 anos, CEO absoluto de uma multinacional de comunicação, assemelha-se muito ao retrato de Rupert Murdoch. Pode ser que seja. Admirável. Publicou a Bertrand.

Entre Silêncios. Poesia 1961-2018 — Poeta, ensaísta, ficcionista, dramaturga e tradutora, reconhecida como a nossa maior especialista em simbologia, Yvette K. Centeno reuniu a sua obra poética publicada entre 1961 e 2015, à qual acrescentou inéditos escritos até 2018. O registo próximo da sottovoce não isenta esta poesia de algum humor corrosivo. Preciosa edição, que nos devolve uma poeta que andava esquecida. Se não conhece, devia. Publicou a Glaciar.

Herman Melville. Ficção Curta Completa — Prosseguindo a sua criteriosa edição de clássicos, a E-Primatur deu este ano à estampa os contos e outros dispersos da ficção do autor de Moby Dick. Quem não conhece, pode ler aqui os seis Contos da Piazza, que ocupam 245 das 591 páginas do volume. Uma dúzia de textos agora publicados conhece a sua primeira versão em português.

O Triângulo Mágico — Cesariny teve mais sorte que alguns dos seus pares já biografados. António Cândido Franco, professor de linguistica e literatura na Universidade de Évora, biógrafo de Agostinho da Silva, fez a tão esperada biografia do poeta e pintor. Numa narrativa de cunho próprio, isenta de hagiografia, Franco não deixa de fora aspectos melindrosos da vida privada, bem como nenhum dado importante da vida pública de Cesariny. A história do Grupo Surrealista de Lisboa encontra-se muito bem documentada. O volume inclui quadro genealógico, Portaló, doze capítulos, um epílogo, vários anexos, portfolio fotográfico, índice de abreviaturas e uma extensa tábua bibliográfica activa e passiva. O autor conheceu pessoalmente o seu biografado e teve acesso a importantes acervos de correspondência, tendo conversado com testemunhas idóneas. Leitura obrigatória por parte de quem se interessa pelo biografado. Publicou a Quetzal.

Obra Reunida de Manuel de Lima — Quase ninguém se lembra hoje de Manuel de Lima (1915-1976), escritor, musicólogo, crítico e artista plástico. Devemos a Vladimiro Nunes o volume em que sua obra completa foi reunida. A vida errática afastou-o dos círculos dominantes, e o exílio na Venezuela “apagou-o” da vida literária portuguesa. Cumulativamente, João Gaspar Simões e Óscar Lopes, gurus da crítica, não gostavam dos seus livros. Absurdizante, diziam. Era demasiado humor negro e nonsense para os hábitos indígenas. Além dos quatro livros, o volume inclui uma extensa e muito esclarecedora introdução de Vladimiro Nunes, retratos, desenhos, correspondência, fac-símiles de manuscritos, da certidão de nascimento e do assento de óbito, bem como reproduções de pinturas suas que fazem parte do espólio do Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada. O careca evidente decerto gostaria deste resgate. Publicou a Ponto de Fuga

Leonardo da Vinci — Coube ao americano Walter Isaacson, professor de História, fazer a biografia de Leonardo. Trabalho ambicioso, respeitador do protocolo académico, porém escrito de forma a interessar o leitor comum. Além das ilustrações a cores (mais de uma centena), o volume inclui explicação sobre um pormenor do retrato escolhido para a capa, relação biográfica dos principais personagens, cronologia do biografado, sessenta páginas de notas, bibliografia e índice remissivo. Ao longo de trinta e três capítulos, a vida de Leonardo flui com naturalidade, desde o seu nascimento em 1452, até à sua morte em 1519. Isaacson não omite nada: nem a condição homossexual, assumida sem complexos, nem os crónicos problemas de dinheiro do homem que fez A Última Ceia, a pintura mais reproduzida de todos os tempos. Notável. Publicou a Porto Editora.