Hoje na Sábado.
Com as livrarias entupidas, há que fazer contas e escolhas. Escolhi nove títulos: obras de Edward St Aubyn, Natalia Ginzburg, Artur Domoslawski, Alice Brito, Fernando Assis Pacheco, Marianne Moore, Lucia Berlin, Nuno Júdice e António Sousa Homem.
Edward St Aubyn (n. 1960), o romancista inglês mais fulgurante da sua geração, faz com Dunbar e as suas filhas a versão contemporânea dessa tragédia familiar que é o Lear de Shakespeare. Depois do quinteto Melrose parecia impossível manter a fasquia, mas St Aubyn chega lá. Henry Dunbar, CEO absoluto de uma multinacional de comunicação (alegoria de Murdoch?), enclausurado pela família numa residência sénior para bilionários, atolado em psicofármacos, consegue fugir, mas não recupera o poder global. Como sempre, St Aubyn é virtuoso na forma como descreve as personagens, os estados de espírito e as planícies geladas do Lake District. Notável. Cinco estrelas. Publicou a Bertrand.
A italiana Natalia Ginzburg (1916-1991), que andava desaparecida das livrarias portuguesas, regressa com Léxico Familiar, obra-chave desta autora que quis que lêssemos a história da sua família como um romance. O livro acompanha os anos da ascensão do fascismo italiano, as leis raciais de Mussolini e a Segunda Guerra Mundial. Os Levi são judeus, Natalia é a mais nova de cinco irmãos. Por sua casa, em Turim, passaram os amigos, intelectuais e poetas, entre eles Pavese. A escrita seca recupera os fulgores da adolescência, as ignomínias da guerra, os combates ideológicos, as dúvidas (América ou Palestina?), em suma, a vida como ela foi. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.
Um dos jornalistas mais célebres do século XX foi o polaco Ryszard Kapuscinski (1932-2007), autor de livros que foram bestsellers planetários. Mas, como demonstrado na biografia escrita por Artur Domoslawski — Kapuscinski. Uma Vida —, o seu percurso está cheio de zonas de sombra. Domoslawski entrevistou a viúva, que tentou evitar a publicação do livro, incomodada com os detalhes sobre a vida privada de ambos (os casos extra-conjugais) e o facto de Kapuscinski ter sido agente activo dos serviços secretos polacos. A grande surpresa surge com a revelação de que muitos ‘factos’ eram efabulados: as amizades com Che Guevara, Allende e Lumumba; a presença na Praça de Tlatelolco, na Cidade do México, durante o massacre de 1968; a história de como o pai ‘escapou’ ao massacre de Katyn, etc. Kapuscinski defendia-se argumentando com a liberdade do jornalismo literário… Quatro estrelas. Publicou a Assírio & Alvim.
Todos sabemos que Alice Brito (n. 1954) é uma escritora comprometida com a denúncia do tempo ominoso do fascismo: «Mas será que tem que se escrever […] sobre esta porra de existência que nos aconteceu?» Advogada, feminista e activista política, a nitidez da voz autoral traz com ela a vantagem suplementar da oralidade bem calibrada. A Noite Passada dá testemunho do país acabrunhado dos anos 1950-70, a queda do Estado Novo, os “desacertos” de Setúbal, cidade-palco do romance e, por fim, a ressaca do 25 de Novembro de 1975. Alice Brito é muito hábil na forma como manipula o fluxo da consciência, encadeando factos reais ou imaginados: subalternidade das mulheres, gravidez fora do casamento, violência, delação, miséria, ignomínia da polícia política, guerra, traição. Quatro estrelas. Publicou a Planeta.
Nunca é de mais sublinhar a importância de Fernando Assis Pacheco (1937-1995) no contexto da poesia portuguesa do século XX. Mantendo o título original, A Musa Irregular, a edição aumentada da sua obra poética, organizada por Abel Barros Baptista, colige os dez livros publicados em vida, o Lote de Salvados que fechava o volume de 1991, o livro póstumo Respiração Assistida, apenas publicado em 2003, bem como um Suplemento ao Lote de Salvados, secção que inclui dez poemas-colagem, mas também inéditos e dispersos. Subsumindo o melhor da tradição, Assis Pacheco fez a síntese do classicismo com o modernismo, a declinação surrealista, o discurso fescenino, formas versificatórias próximas da cantiga popular e, formando um núcleo de grande exigência, os poemas da guerra colonial. Manuel Gusmão assina o posfácio. Cinco estrelas. Publicou a Tinta da China.
Graças a Rui Knopfli, descobri Marianne Moore (1887-1972) há perto de cinquenta anos. Agora, Margarida Vale de Gato acrescentou O Pangolim e Outros Poemas à língua portuguesa. Antologia bilingue, a tradutora ilumina a poesia daquela que considera ser «a mais persistente e porventura mais notável voz feminina» do modernismo americano. O gosto pelas aulas de biologia e histologia reflectiu-se no universo imagético, fundindo realidades díspares. Por exemplo, ornitologia, baseball e crustáceos: «caranguejos como lírios / verdes e submarinos / fungos, roçam como juncos.» A consagração chegou em 1951, quando Collected Poems recebeu os três prémios literários de maior prestígio nos Estados Unidos: o Pulitzer, o Bollingen e o National Book Award. Imprescindível. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d'Água.
No texto que serve de prefácio à coletânea de contos Anoitecer no paraíso, Mark Berlin explica o que foi a vida da mãe, Lucia Berlin (1936-2004), outsider dos círculos institucionais da comunidade literária americana até à publicação do livro póstumo Manual para Mulheres de Limpeza, publicado onze anos após a sua morte. A vida (alcoolismo, toxicodependência, nomadismo) explica a obra, e é desse magma, mais tarde agravado pela doença, que Lucia extrai histórias prodigiosas, como são, entre outras, “Por vezes, no Verão”, “Anoitecer no paraíso”, “As esposas” ou “Pony Bar, Oakland”. Quatro estrelas. Publicou a Alfaguara.
Autor de uma obra extensa e poeta consagrado, Nuno Júdice (n. 1949) continua a publicar ficção, género em que O Café de Lenine é o título mais recente. Trata-se de uma novela que, a partir de clássicos da literatura universal, põe em pauta o presente. Sirvam de exemplo Madame Bovary, de Flaubert, e A Cartuxa de Parma, de Stendhal. Um divertissement culto com ecos do imaginário “surrealista”, forma enviesada de classificar uma narrativa suportada em personagens e factos concretos, directa ou indirectamente citados, tais como Lenine, Camões, Eça, Dante, Lispector, a Primeira República, o rendimento social de inserção, o ofício de escritor e outras derivas. Não é para qualquer um, mas Júdice consegue. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.
António Sousa Homem, heterónimo de um conhecido escritor, deu à estampa mais uma compilação das suas crónicas — O Crepúsculo em Moledo. Acabado de sair dos prelos, com prefácio de João Pereira Coutinho, constitui a quarta colectânea de crónicas deste “reaccionário minhoto”, guardião dos pergaminhos de Moledo, advogado e botânico, porventura o derradeiro miguelista. Numa prosa irrepreensível, Sousa Homem ilustra o presente à luz da tradição histórica: «A verdade é que nunca fomos liberais. Temos um problema grave com o dicionário.» Quatro estrelas. Publicou a Porto Editora.
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