Hoje na Sábado escrevo sobre Cartas Persas (1721), de Montesquieu, ou seja, Charles-Louis de Secondat (1689-1755), barão de La Brède e de Montesquieu, filósofo, fundador da sociologia moderna, o aristocrata defensor das liberdades e da tolerância que abalou as certezas do século XVIII ao publicar De l’Esprit des Lois (1748). A presente tradução segue a edição canónica de 1754, ocasião em que foram acrescentadas onze cartas ao corpus original. Cartas Persas é um romance epistolar, género que atingiria o cume com As Ligações Perigosas (1782), de Laclos. Montesquieu não vai tão longe como o futuro marechal, e faz todo o sentido que assim seja, porquanto o livre-pensador e o militar napoleónico são homens de índole diferente. Em todo o caso, Montesquieu faz um retrato cru, muitas vezes cínico, da época em que viveu, dando ênfase ao despotismo e ao carácter intrusivo da monarquia francesa, de par com a crítica ao dogmatismo da Igreja. Em suma, o autor usa o artifício da ficção (a correspondência de Usbek e Rica) para invectivar os fundamentos da sociedade. De certo modo, as “observações” dos dois persas antecipam o tratado sobre o espírito das leis. A controvérsia era inevitável: «A maior parte dos governos da Europa são monárquicos, ou assim chamados. Na verdade, ignoro se já houve alguns verdadeiramente assim; pelo menos, não subsistiram muito tempo na sua pureza. É um estado violento… etc.» A denúncia do abuso dos privilégios («a vantagem está habitualmente do lado do príncipe») fez a fama do autor que pôs na boca de um estrangeiro a frase assassina («o poder dos reis da Europa é muito grande»), pretexto para teorizar sobre crimes de lesa-majestade e o arbítrio da pena de morte. Isto tudo com a heterodoxia adicional de o fazer por comparação com o modus operandi dos sultões persas. No prefácio, Nuno Júdice expõe com clareza as linhas de força do romance, em especial o «fundo libertino» associado às histórias do serralho de Solim. Cinco estrelas.
Escrevo ainda sobre Desmobilizados, a estreia de Phil Klay (n. 1983) que suscitou aplausos gerais. Os prémios vieram logo a seguir: o National Book na categoria de ficção, o John Leonard para a melhor primeira obra em qualquer género, etc. O coro laudatório tem razão de ser. O livro junta doze contos sobre a experiência do autor, veterano do Iraque. Klay não é um marine comum. Formou-se em Dartmouth (uma universidade da Ivy League) e, antes de publicar o livro, tinha escrito ensaios para o Wall Street Journal, o New York Times e outras publicações do mesmo calibre. O conto que abre o volume foi originalmente publicado na edição americana da revista Granta. Klay faz o retrato em grande angular da ocupação do Iraque. Direitos humanos? Códigos de conduta? Tretas. Depois de degolar um prisioneiro, um capitão diz: «Sabe bem matar um gajo com uma faca.» Narrados na primeira pessoa, os textos estão impregnados de sexo, violência e stress pós-traumático. Uma catarse sobre o sem sentido da guerra, num continuum narrativo admirável. Para um americano não deve ser fácil ler este livro. Creio que é o maior elogio que se lhe pode fazer. Quatro estrelas e meia. Publicou a Elsinore.