Hoje na Sábado.
Os prelos continuam activos e, apesar do Verão, há novidades de todo o tipo. Além de nova tradução da Eneida, o mais famoso épico latino, merecem destaque um romance autobiográfico de Édouard Louis, memórias de Patti Smith, o relato de Malaparte feito a partir de Leninegrado, o ensaio colérico que Bernard-Henri Lévy dedica à pandemia e a biografia política de Amália escrita pelo jornalista Miguel Carvalho.
Não é a primeira vez que os doze livros da Eneida de Virgílio são vertidos para português. Agostinho da Silva já o havia feito, mas a nova tradução de Carlos Ascenso André, além de anotações ao poema, tem a vantagem de lhe acrescentar uma introdução em forma de exegese (acção, personagens, modelo neotérico), auxiliar precioso para o leitor menos versado em cultura latina. Quem não conhece a epopeia do troiano encontra nestes quase dez mil hexâmetros heróicos, extremamente fluentes na língua de chegada, a suma de uma vida. Imprescindível. Esta edição segue de perto a de Jacques Perret. Editou a Cotovia.
Com poucos meses de intervalo foram traduzidos dois romances autobiográficos do francês Édouard Louis (n. 1992), sendo o mais recente Quem Matou o Meu Pai. Ao contrário do anterior, o foco não são os preconceitos de classe nem as várias formas de xenofobia e homofobia. O autor responsabiliza directamente quatro presidentes (Chirac, Sarkozy, Hollande e Macron) pela morte do pai: «Porque é que nunca se dizem estes nomes numa biografia?...» Citado assim, parece um panfleto. Longe disso. Quem Matou o Meu Pai é uma evocação pungente dos desencontros entre pai e filho. As “reformas” que partiram a espinha à classe trabalhadora francesa explicam o título. Setenta páginas de um libelo seco, sem resquício de auto-complacência. Editou a Elsinore.
Foi agora traduzido O Ano do Macaco, terceiro volume das memórias de Patti Smith (n. 1946). O mais recente ano do macaco foi 2016, aquele em que Patti fez 70 anos e Trump foi eleito: «O fanfarrão urrou. E o silêncio tomou conta de todos. […] Um grande viva à apatia americana.» Patti tinha razão: «quem decide são os que estão quietos e calados…» Aproveitou para viajar. Entre Manhattan e Venice Beach, a errância incluiu Lisboa, «cidade das noites calcetadas», com um punhado de páginas dedicadas a Pessoa. Vagabundagem, recordações de amigos moribundos (Sam Shepard, Sandy Pearlman) e, claro, a velha obsessão com os sonhos. Patti nunca desilude. Editou a Quetzal.
Actualmente já poucos se lembram do italiano Curzio Malaparte (1898-1957), autor de uma obra muito vasta, em vários géneros. Escritor maldito, cinco anos em degredo por delito de opinião, misto de repórter, diplomata e agente secreto, Malaparte publicou Kaputt em 1944, logo após a queda de Mussolini. A história de como fez chegar o manuscrito (dividido em três partes) a Milão ilustra bem o melindre da situação. Kaputt narra o cerco a Leninegrado visto a partir do lado alemão, enquanto correspondente do Corriere della Sera. Palavras suas: «A guerra é a paisagem objectiva deste livro.» Pese embora a quota ficcional, os factos estão lá. Traduzido em todo o mundo, Kaputt deu ressonância planetária a Malaparte. Editou a Cavalo de Ferro.
Os leitores de Bernard-Henri Lévy (n. 1948) não ficaram surpreendidos com a ira do filósofo perante a gestão política da pandemia Covid-19, Este Vírus Que Nos Enlouquece. O «medo que se abateu sobre o mundo» seria uma consequência irracional da ascensão do poder médico. Lévy exorciza os novos aprendizes de feiticeiro, o confinamento das sociedades, a lamentável combinação de «maus sentimentos e maus reflexos», o inevitável «regresso dos bufos à antiga», a rapidez com que o Ocidente se deixou subjugar pelo totalitarismo chinês. Controverso, decerto. Ou não seria BHL. Editou a Guerra & Paz.
No ano do centenário de Amália, o jornalista Miguel Carvalho (n. 1970) publicou uma minuciosa biografia da fadista — Amália. Ditadura e Revolução. O autor desconstrói a lenda que “amarra” Amália ao Estado Novo. Quem não sabe, fica a saber que Amália apoiou as famílias de presos políticos, militantes comunistas na clandestinidade e até sequazes de Humberto Delgado. As revelações não ficam por aqui. Bem documentada, essa “história secreta” é narrada com desenvoltura. Miguel Carvalho entrevistou cerca de cem pessoas, cotejou fontes e fez uma síntese de seiscentas páginas. O volume inclui cronologia, bibliografia, portfolio fotográfico e índice onomástico. Um documento para a História. Editou a Dom Quixote.