sexta-feira, 11 de junho de 2021

NINGUÉM É INOCENTE

A troca de informações entre Estados faz-se desde que o mundo é mundo. Não vale a pena discutir o mérito da prática. Sempre se fez, sempre se fará.

O que há de novo no caso que envolve a Câmara de Lisboa e a embaixada da Federação Russa levanta outro tipo de interrogações e acrescenta uma nota de incredulidade.

Toda a gente sabe, ou devia saber, que as manifestações (um direito garantido pela Constituição da República) não carecem de autorização. A única formalidade consiste na comunicação prévia, às autoridades, do local, data e hora da sua realização. É o que fazem os sindicatos, por exemplo. Quem quiser manifestar-se à margem de qualquer tipo de associação — como, alegadamente, terão feito os imigrantes russos —, não fica dispensado dessa comunicação: as autoridades exigem a identidade de três promotores. Um devia chegar, mas manda quem pode e obedece quem deve.

O Regulamento Geral sobre Protecção de Dados existe desde Agosto de 2019. 

A Lei n.º 58, de 8 de Agosto de 2019, «assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados.» Claro como água. 

Aparentemente, ninguém informou as autarquias. Face ao que se passou entre a Câmara de Lisboa e a embaixada da Federação Russa, é sintomático o silêncio das outras 307 autarquias nacionais.

Aqui chegados, dizer três coisas: o que se passou é grave / os funcionários das autarquias têm que respeitar o RGPD / nesta história mal contada ninguém é inocente.

HIGHLIGHT


Helena Vasconcelos, hoje no Público, sobre Devastação

«[...] É essa sensação de incómodo, a que não falta um arrepio de excitação, que acompanha a leitura destes seis contos de Eduardo Pitta, reunidos sob o título Devastação. Eduardo Pitta é um daqueles autores que é capaz de escrever poesia, ensaio, literatura de viagens e prosa sem nunca abandonar uma espécie de “lirismo selvagem”, em que a crueldade natural do ser humano se conjuga elegantemente com as evocações mais refinadas, as referências mais requintadas. [...] Com uma concisão que lembra os contos de Lydia Davis e a poética desencantada dos de Raymond Carver, Eduardo Pitta é, no entanto, original e único na forma como, em poucas palavras sabiamente escolhidas, cria tensão, drama, angústia e desassossego. [...] São contos cruéis e surpreendentemente exaltantes

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quinta-feira, 10 de junho de 2021

ANGOCHE POR VALE FERRAZ


Cinquenta anos passados sobre o Caso Angoche, mistério por decifrar, Carlos Vale Ferraz (n. 1946) deu à estampa Angoche — Os Fantasmas do Império. Vale Ferraz, pseudónimo literário do coronel Carlos Matos Gomes, na dupla qualidade de oficial do Exército e de investigador de História contemporânea, sabe do que fala. 

Oficialmente, os factos são estes: no dia 24 de Abril de 1971, entre as cidades de Quelimane e da Beira, na costa de Moçambique, foi avistado à deriva, com fogo na ponte de comando e na casa das máquinas, o navio de cabotagem Angoche, que transportava material de guerra, treze tripulantes negros, dez tripulantes brancos, um passageiro e um cão. O alerta foi dado no dia 27 pelo petroleiro Esso Port Dickson, com pavilhão do Panamá, continuando por esclarecer o hiato de três dias. Nunca foram encontrados corpos, desconhecendo-se o destino de quem ia a bordo. O Angoche foi rebocado para a baía de Lourenço Marques, onde chegou a 6 de Maio. Mais vírgula menos vírgula, dependendo do jornal ou das fontes “autorizadas”, é aquilo a que a opinião pública tem direito desde 1971.

Há especulações e perguntas para todos os gostos. O Angoche foi atacado? Por quem? Foi vítima de golpe da ARA ou da FRELIMO? Submarino russo ou chinês? Que papel tiveram os serviços secretos sul-africanos? O que aconteceu aos 24 homens? Foram para a Tanzânia? Por que razão o radiotelegrafista se “esqueceu” de embarcar, ficando em Nacala? Que papel tinha na história a mulher de alterne “suicidada” na Beira?

Sobre o assunto existe bibliografia documental, mas Angoche — Os Fantasmas do Império é um romance. A fórmula permite a Carlos Vale Ferraz inserir a intriga ficcional nos interstícios dos factos. E faz isso muito bem.

Angoche — Os Fantasmas do Império é dedicado «a quem morreu por saber de mais sobre o caso. Mortos por uma causa que ninguém teve a coragem de assumir

Para desenvolver o plot, o narrador apoia-se nos conhecimentos do “tio Dionísio”, oficial da Marinha portuguesa com ligações aos serviços secretos sul-africanos. Narrativa aliciante, faz o retrato dos últimos anos da colonização, vistos a partir de Moçambique. Por exemplo, é muito curiosa a caricatura a traço grosso de alguma burguesia de Lourenço Marques (Eduardo de Arantes e Oliveira, governador-geral de Moçambique à data do caso Angoche, surge mais de uma vez), os atritos entre a PIDE e os militares, etc. A sombra da operação Alcora — aliança militar secreta entre Portugal, a África do Sul e a Rodésia — perpassa no relato. Em suma, 170 páginas de boa ficção sobre factos obscuros da guerra colonial.

Lembrar que da obra ficcional de Carlos Vale Ferraz faz parte Nó Cego (1982, reeditado em 2018), título incontornável da bibliografia sobre a guerra em Moçambique.

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quarta-feira, 9 de junho de 2021

TAP COM LIDERANÇA FEMININA


Após dias de rumores, foi hoje confirmado que Christine Ourmières-Widener, 57 anos, engenheira aeronáutica diplomada pela École Nationale Supérieure de Mécanique et d'Aérotechniqueé, será a nova CEO da TAP.

Madame Ourmières-Widener foi CEO da britânica Flybe, a maior companhia aérea regional europeia que, por insolvência, cessou toda a operação em Março do ano passado.

Do seu currículo consta a passagem (1988-2016) pela administração da Air France, companhia onde foi responsável pela operação do Concorde. Mais tarde integrou a administração da Air France/KLM. Também passou pela companhia aérea irlandesa CityJet.

Entretanto, Miguel Frasquilho deixa o cargo de chairman, sendo substituído por Manuel Beja.

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OS 16 ANOS DA CNCDP

Alguém se lembra de quanto tempo durou, i.e., esteve em funções a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses?

A Comissão presidida por Vasco Graça Moura e outros durou dezasseis anos (1986-2002). Portanto, Rui Rio devia pôr um assessor a consultar o Diário da República antes de efabular sobre «os cinco anos» de Pedro Adão e Silva.

Exactamente: começou a preparar-se em 1986 o V Centenário da Viagem de Vasco da Gama (1497-1498) e da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia.

Vasco Graça Moura, que fez um trabalho notável, não exerceu, tal como os outros, pro bono.

Rui Rio não se lembra. Estaria ocupado com os cargos que exercia no BCP, nas tintas CIN, na Boyden Executive Search e outras empresas do mercado de capitais.

As pessoas comuns não têm obrigação de recordar estes detalhes. Mas um líder partidário tem. O presidente do PSD não se sente confortável com as celebrações da queda da ditadura? Problema dele.

terça-feira, 8 de junho de 2021

TRANQUIBÉRNIA


A nomeação de Pedro Adão e Silva para presidir à Comissão Executiva das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril parece ter irritado muita gente. Mas fica mal ao líder da Oposição referir-se-lhe nos termos em que o fez.

Queriam o quê? Um neto de Salazar à frente das comemorações da queda da ditadura? Um antigo membro da Falange?

É natural que o PS tenha escolhido um antigo Secretário Nacional seu. Antigo porque Pedro Adão e Silva abandonou a política activa em 2005. O PSD escolheria um vice-presidente, o PCP um membro destacado do Comité Central, etc.

Nascido em 1974, o ano da revolução, doutorado em Ciências Sociais e Políticas pelo Instituto Europeu de Florença, professor de sociologia e políticas públicas no ISCTE, autor de obras sobre o estado social, surfista, meu amigo, Pedro Adão e Silva parece-me um boa escolha. O próprio Presidente da República enalteceu as suas qualidades.

contabilidade de Rui Rio é de merceeiro deprimido. As insinuações são indignas do chefe da Oposição.

domingo, 6 de junho de 2021

LACERDA


UM POEMA POR SEMANA — Para hoje escolhi Depois de Veres Guerra e Paz de Sergei Bondarchuk de Alberto de Lacerda (1928-2007), poeta duplamente expatriado, uma das grandes vozes da poesia portuguesa da segunda metade do século XX. Simplificando muito, pode dizer-se que a sua obra vive em permanente confronto com a tripla pulsão da melancolia, da liberdade e da iconoclastia.

Natural da Ilha de Moçambique, homossexual, Lacerda veio para Portugal pouco antes de completar 18 anos. Em Lisboa depressa fez amizade com Cinatti, Sophia, Cesariny, David, Ramos Rosa, Raul de Carvalho e Luís Amaro. Em 1950, com David, Couto Viana e Luiz de Macedo fundou as folhas de poesia Távola Redonda.

Mas foi curto o intervalo português: no Verão de 1951, quando o n.º 8 dos Cadernos de Poesia, então dirigidos por Jorge de Sena, lhe foi integralmente dedicado, partiu para Londres, onde viveu até morrer.

Na capital britânica trabalhou na BBC, divulgando a cultura portuguesa. Num curto espaço de tempo frequentava os salões literários mais exclusivos da cidade. Talvez por isso, Herberto Helder tenha dito que «Alberto de Lacerda tem Londres invadida por sofás» [cf Photomaton & Voz, 1979]. Tinha 23 anos quando Edith Sitwell o convidou para almoçar com T. S. Eliot e William Walton. Não por acaso, foi em Londres que foi publicado o seu primeiro livro, 77 Poems (1955), sob chancela da Allen & Unwin e prefácio do sinólogo Arthur Waley. Esse livro de estreia teve calorosa recepção crítica por parte de gurus como Quentin Stevenson, J. M. Cohen e David Wright. E terá sido no momento em que o Times Literary Supplement dedicou ao livro uma recensão atenta, que Portugal começou a fazer de conta que ele não existia.

Em 1959, a convite de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, permaneceu um ano no Brasil, dando conferências e recitais em universidades e outras instituições. Finalmente, em 1961, um livro em Portugal: «Palácio». Críticos empenhados, como Sena, Eduardo Lourenço e Ramos Rosa, sempre o elogiaram, mas a ortodoxia vigente ignorava.

Entre 1967 e 1993, Alberto de Lacerda leccionou em universidades americanas, primeiro em Austin (no Texas), depois em Nova Iorque, por último em Boston, onde esteve a partir de 1972. Durante esses vinte e seis anos, passava um semestre de cada lado do Atlântico.

Um dia, já depois do 25 de Abril, o dirigente máximo do Instituto de Alta Cultura “descobriu” que Lacerda não tinha habilitação própria, ou seja, licenciatura. E não hesitou: mandou rescindir o contrato. Incrédulas, as autoridades académicas americanas não queriam acreditar que o “seu” professor de Poética fosse posto de lado por tal motivo. E fizeram o óbvio: contrataram-no directamente, não aceitando receber o licenciado proposto por Portugal.

Tal como acontecera em Inglaterra, o convívio com a intelligentzia norte-americana foi fácil. Privou com Marianne Moore, Thom Gunn, Robert Duncan, David Hockney e outros. Em 1969 tinha uma antologia publicada pela Universidade do Texas, Sellected Poems. Foi o primeiro e único autor de língua portuguesa a dar um recital da sua poesia na Biblioteca do Congresso, em Washington. Em 1973, editou Maio, International Poetry Magazine, de que saiu um único número, com colaboração de Cesariny, Guillén, Octavio Paz, Murilo Mendes, Dominique Fourcade e Augusto de Campos.

Coleccionador de arte, ele próprio autor de colagens (em 1987 expôs pela última vez na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa), são lendárias as suas amizades com Vieira da Silva, Arpad Szenes, Paula Rego, Victor Willing, Menez, Jorge Martins, etc., artistas sobre quem escreveu na imprensa portuguesa mas também na Encounter, The Listener e outras publicações. 

Também em 1987, a sua colecção privada de artistas do vasto mundo (arte, correspondência, retratos) foi mostrada ao público no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, tendo a Fundação editado um precioso catálogo com texto introdutório de Eduardo Lourenço. Outro volume indispensável para “mergulhar” no universo de Lacerda é o álbum fotográfico The Sea That Lies Beyond My Rocks, organizado por Luís Amorim de Sousa e publicado em 2010 pela Assírio & Alvim em parceria com a Fundação Mário Soares.

Em 27 de Agosto de 2007, a um mês de completar 79 anos, foi encontrado em coma na sua casa de Londres, pelo crítico de arte John McEwen (iam almoçar juntos), seu confidente e autor do obituário publicado no Independent. Hospitalizado de seguida, morreria horas depois.

O poema desta semana pertence a Mecânica Celeste (1994), que colige poemas escritos entre 1963 e 1970. A imagem foi obtida a partir de Oferenda II, segundo volume da obra poética quase completa, publicado pela Imprensa Nacional em 1994.

[Antes deste, foram publicados poemas de Rui Knopfli, Luiza Neto Jorge, Mário Cesariny, Natália Correia, Jorge de Sena, Glória de Sant’Anna, Mário de Sá-Carneiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberto Helder, Florbela Espanca, António Gedeão, Fiama Hasse Pais Brandão, Reinaldo Ferreira, Judith Teixeira, Armando Silva Carvalho, Irene Lisboa, António Botto e Ana Hatherly.]

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