Hoje na
Sábado.
A rentrée trouxe novidades há muito aguardadas. Entre elas, a edição em volume único da autobiografia de Ruben A., a edição da poesia reunida de Leonor de Almeida, romances novos de Colson Whitehead, David Grossman e Bernardine Evaristo, mas também a oportuna reedição do clássico de Daniel Defoe sobre a Grande Peste de Londres.
No ano do centenário do nascimento de Ruben A. (1920-2020), o mais secreto dos grandes autores portugueses, reeditam-se num único volume os três tomos de O Mundo À Minha Procura, autobiografia publicada entre 1964 e 68. Natural de Lisboa, Ruben Alfredo Andresen Leitão morreu em Londres, cidade onde viveu vários anos. Em Setembro de 1975, um ataque de coração impediu que assumisse o cargo de Senior Fellow no St Antony’s College de Oxford. Tinha 55 anos e uma obra dividida entre ficção (contos e romances), dramaturgia, narrativa de viagem, diarística e História. Salazar chamava-lhe “o maluco”. Não obstante, após ter trabalhado cerca de 20 anos na embaixada do Brasil em Lisboa, foi administrador da Imprensa Nacional e director-geral dos Assuntos Culturais do ministério da Educação e Cultura. A Torre da Barbela, romance de 1964, é um dos títulos centrais do cânone nacional. Escrito em registo desembaraçado e culto, O Mundo À Minha Procura conta agora com um prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa.
Leonor de Almeida (1909-1983) é hoje um nome ignorado por quase toda a gente. Em boa hora decidiu Vladimiro Nunes reunir os quatro livros que constituem a sua poesia completa. Na Curva Escura dos Cardos do Tempo é o resultado desse trabalho, com o detalhe de seriar os livros por ordem inversa à da publicação original. Estabelecendo, no prefácio, o guião da recepção crítica da poeta, Ana Luísa Amaral estranha a desatenção de que Leonor de Almeida, uma feminista avant la lettre, tem sido alvo. Publicada quase em simultâneo, a monografia biogáfica Tatuagens de Luz, de Cláudia Clemente, ilumina a personalidade de uma autora que urge descobrir.
Quem acompanha a ficção norte-americana não ignora Colson Whitehead (n. 1969), duas vezes laureado com o Pulitzer de Ficção — proeza até ao momento apenas lograda por Tarkington, Faulkner e Updike —, primeiro com A Estrada Subterrânea, agora com Os Rapazes de Nickel, acabado de traduzir. Voltamos à escavação do passado, neste caso aos horrores da Dozier School, o reformatório da Flórida onde desde 1899 rapazes negros foram torturados e enterrados num cemitério secreto. O romance ficciona essa realidade macabra, descoberta por estudantes universitários de arqueologia. Dito de outro modo: a experiência pessoal de Elwood transforma o terrorismo racial em Literatura.
O mais recente romance do israelita David Grossman (n. 1954), A Vida Brinca Comigo, confirma-o como uma das grandes vozes actuais. O livro inspira-se em factos verídicos, em particular nos vividos por uma sobrevivente de Goli Otok, a ilha croata do Mar Adriático que serviu de prisão e campo de trabalhos forçados. Quando as personagens do romance (Vera, Nina, Guili e Rafi) visitam o local, é todo o passado que regressa. Não obstante a secura da linguagem, A Vida Brinca Comigo é o relato envolvente e doloroso da história de duas famílias.
Com o vibrante Rapariga, Mulher, Outra, a britânica Bernardine Evaristo (n. 1959) venceu, ex-aequo com Margaret Atwood, o Man Booker Prize de 2019. Bernardine, filha de pai nigeriano, constrói um mosaico com 12 personagens principais (Amma, Yazz, Dominique, Carole, Bummi, LaTisha, Shirley, Winsome, Penelope, Megan-Morgan, Hattie, Grace) através de cujas vidas, cosidas num patchwork multicultural, vão sendo abordadas questões pós-coloniais e de identidade de género. É pena que Nzinga, feminista radical e rainha do vodu, não tenha direito a capítulo próprio. Logo a abrir, não é difícil identificar em Amma, uma dramaturga lésbica negra, o alter-ego da autora. Nem todas são jovens habitantes de Londres. Hattie, por exemplo, tem 93 anos e mora no Norte da Inglaterra. Em suma, um retrato muito nítido do Reino Unido contemporâneo.
Pelas piores razões, vem a propósito a reedição de Diário do Ano da Peste, o clássico que Daniel Defoe (1660-1731) publicou em 1722 a seguir ao sucesso planetário de Robinson Crusoe. Defoe era uma criança quando a peste bubónica dizimou 200 mil pessoas em Londres, mas o livro faz um relato impressivo da epidemia, incluindo listas com as directivas impostas pelo Lord Mayor para controlo de danos. Precursor do romance moderno inglês, Defoe foi, além de homem de negócios, um político muito interventivo e ocasional espião. Rui Tavares assina o prefácio.