sábado, 22 de setembro de 2018

INFARMED

Acabou a novela da transferência do Infarmed para o Porto, iniciada em Novembro de 2017. Ouvido ontem no Parlamento, o ministro da Saúde revelou que o Governo suspendeu a medida.

Integrada na candidatura falhada do Porto à sede da Agência Europeia do Medicamento, a transferência do Infarmed não podia fazer-se sem os seus 356 funcionários. Sucede que apenas 19 (nenhum dirigente, nenhum quadro superior, nenhum técnico especializado) manifestaram disponibilidade para se deslocar.

Alguém no seu perfeito juízo acreditou ser possível transferir 356 funcionários e respectivas famílias para mais de 300 quilómetros da sua residência?

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

MAPPLETHORPE CENSURADO

João Ribas, director do Museu de Serralves, e Paula Fernandes, curadora, organizaram a exposição de Mapplethorpe com 179 trabalhos do fotógrafo americano. A publicidade institucional vinca a existência desse conjunto.

Mas a administração da Fundação vetou 20, reduzindo a mostra a 159. Também impôs proibição a menores de 18 anos.

João Ribas demitiu-se esta noite do cargo de director.

A administração da Fundação é composta por Ana Pinho, Manuel Cavaleiro Brandão, Manuel Ferreira da Silva, Isabel Pires de Lima, Vera Pires Coelho, Carlos Moreira da Silva, António Pires de Lima e José Pacheco Pereira.

A decisão de interditar as 20 obras foi tomada por maioria ou por unanimidade? Quem votou a favor da interdição?

De que modo a Fundação de Serralves tenciona ressarcir quem (como eu) comprou ingressos por via electrónica?

PIRUETAS

Desde 9 de Janeiro, dia em que Francisca Van Dunem defendeu na TSF a eficácia de mandato único para o cargo de Procurador-Geral da República, a Direita entrou em ebulição. A carta que Passos Coelho publicou ontem à noite no Observador faz a síntese do desapontamento de quantos, nos últimos oito meses, fizeram da recondução de Joana Marques Vidal o turning point do Governo.

Marcelo não pode ceder a Costa, repetiram dirigentes nacionais e apparatchik locais do PSD e do CDS, articulistas encartados, comentadores avençados e eurodeputados metediços. Não houve cão nem gato que não defendesse a continuação de Joana Marques Vidal, titular do cargo desde 2012. Marques Mendes, o oráculo do regime, afiançou que o assunto estava arrumado. Sábado passado, o Expresso fez manchete de uma fake new estridente. Nas audiências feitas pela ministra da Justiça aos partidos com representação parlamentar, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa também se manifestaram a favor da recondução de Joana Marques Vidal.

No centro do furacão, o primeiro-ministro escolheu Lucília Gago, comunicou a escolha ao Presidente da República, foi a Angola, veio a Lisboa trocar os jeans Paul Smith pelo fato Huntsman & Sons (Savile Row) e, sem perder a compostura, partiu para a cimeira da UE em Salzburgo.

Mas, quem ler hoje os jornais da manhã, fica com a sensação de que não aconteceu nada.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

LUCÍLIA GAGO


Por escolha do primeiro-ministro, Lucília Gago, 62 anos, especialista em Direito de Família e Menores, é a nova Procuradora-Geral da República. O Presidente da República já formalizou a nomeação.

António Costa não cedeu à chantagem da Direita nem aos pontos de vista do PCP e do BE, e não reconduziu Joana Marques Vidal.

MACHADO & MÓNICA


Hoje na Sábado escrevo sobre O Corpo Dela e Outras Partes, de Carmen Maria Machado (n. 1986). Por regra, os escritores fortes constroem a sua persona. Mas o processo era lento, e só dávamos por isso a meio da carreira. Agora não. O protocolo das redes sociais mudou tudo. Assim que publica o primeiro livro, o escritor apressa-se a divulgar as idiossincrasias. É o modus operandi de Carmen, filha de emigrantes cubanos e autora residente da Universidade da Pensilvânia, que usa o Twitter para pôr tudo em pratos limpos. Os contos reunidos em O Corpo Dela e Outras Partes dão notícia de uma voz poderosa, sem necessidade de mais nada, porque nos fala do corpo, de sexo, violência, paixão e morte. E fica tudo dito com apreciável grau de conseguimento. Como meta-linguagem, a literatura dispensa folclore. Neste caso, folclore significa o aproveitamento que tem sido feito do seu livro por parte do movimento MeToo. Sucede que a qualidade desta escrita passa bem sem muletas ideológicas. As questões identitárias são centrais à obra? É evidente que sim: «Ela movia-se com uma descontracção masculina e dura […] Fiquei molhada.» Neste conto, um casal de duas mulheres tem um bebé. Lesbianismo, portanto. É a circunstância de Carmen, casada com uma mulher. Um escritor sério escreve sobre o que conhece. A economia discursiva é uma vantagem. Carmen descreve cenas de sexo com natural parcimónia: «Não sei muito bem o que ele vai fazer, só quando o faz. Está duro, quente e seco, e cheira a pão e, quando me rasga, grito e agarro-me a ele como se estivesse perdida no mar.» Os textos mais agressivos, a roçar a pornografia, assina-os como Olivia Glass, o pseudónimo hard. Um dos textos corresponde a 272 sketches escritos a partir das doze temporadas da série de televisão Lei & Ordem. Um inventário de fantasia sem limites. Aqui é um conto, mas este núcleo constitui o livro de estreia: Especialmente Abominável (2013). Uma forma de colagem como qualquer outra. A ficção de Carmen não tem fronteiras, e por vezes aproxima-se da plenitude, como em As Mulheres de Verdade Têm Corpo. Quatro estrelas. Publicou a Alfaguara.

Escrevo ainda sobre Nunca Dancei Num Coreto, da socióloga Maria Filomena Mónica (n. 1943). As crónicas são um género nobre, entre nós muitas vezes confundido com panfleto político. A autora reuniu neste volume as que escreveu a partir de 2011. Maria Filomena Mónica tem a enorme vantagem de pensar pela sua cabeça. Temas prosaicos ou eruditos, o desembaraço é de regra. Com brilho, a autora salta dos efeitos corrosivos da burocracia para as idiossincrasias de Christopher Hitchens, da redução de salários do Estado para a cultura do desenrascanço, dos bastidores da vida académica para a gentrificação do bairro da Lapa, do crash do Lehman Brothers para os direitos das mulheres, da escola pública para a regressão das liberdades individuais, de Sócrates (o antigo primeiro-ministro) para as casas de banho de hotel, da banlieue de Paris para Obama, da farsa independentista de Puigdemont para a guerrilha geracional, do pianista Claudio Arrau para Marcelo (o Presidente), da desigual repartição de sacrifícios para os graffiti, da doença para o esplendor da relva. Deveras estimulante. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d'Água.

MAPPLETHORPE EM SERRALVES


É hoje inaugurada em Serralves uma exposição de Robert Mapplethorpe. Junta 179 trabalhos do autor, incluindo as fotografias de cariz sexual que têm sido boicotadas por museus dos dois lados do Atlântico. Comissariada por João Ribas e Paula Fernandes, arrisca-se a ser o acontecimento cultural mais importante do ano em Portugal. Mapplethorpe (1946-1989) é um dos artistas mais importantes do século XX, e quem não conhece tem aqui uma boa oportunidade. Não voltei a vê-lo desde o Whitney, lá terei que voltar à Marechal Gomes da Costa. Vale uma ou várias deslocações ao Porto. Fica até 6 de Janeiro de 2019.

Clique na imagem.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

PREC TAXISTA


Em protesto contra a legalização das plataformas online de táxis (casos da Uber, Cabify, Taxify e Chaffeur Privé), os taxistas estão a bloquear Lisboa. Desde as 5 da manhã que a Praça dos Restauradores está intransitável. Além dos Restauradores, estão ocupadas, e nalguns casos cortadas ao trânsito, a Avenida da Liberdade, o Marquês de Pombal, a Avenida Fontes Pereira de Melo, o Saldanha e a Avenida da República.

No Porto e em Faro decorrem acções semelhantes.

E depois admiram-se com o extremismo das populações.

Na imagem, interior do Cab londrino (os melhores táxis do mundo) onde circulei na tarde de sábado, 15 de Setembro. Clique

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

BOWLES & SHEPARD


Na edição desta semana da Sábado escrevo sobre Deixa a Chuva Cair, o segundo romance do americano Paul Bowles (1910-1999). Autor de uma obra extensa, Bowles sobrevive como nome de culto. O facto de ter-se expatriado em Tânger logo após a Segunda Guerra Mundial cimentou a lenda do escritor “maldito”. Escreveu quinze colectâneas de contos, seis romances, uma novela, cinco livros de poesia, dois de viagem e uma autobiografia em quatro volumes, mas, na realidade, foram os incidentes biográficos que fixaram o interesse e a avaliação dos contemporâneos. Quantos dos seus leitores sabem que foi um notável compositor de música erudita e de scores para a Broadway? Sem o halo de transgressão que marcou o exílio marroquino, como teria sido a recepção crítica? Além de compositor, ficcionista, poeta e memorialista, Bowles foi tradutor de Sartre e Genet, mas também dos contos orais do pintor Mohammed Mrabet. Metáfora omnipresente, o céu. A epígrafe do Macbeth, de Shakespeare, dá o tiro de partida. O plot ilumina os primeiros tempos de Bowles em Marrocos. Nas suas linhas gerais, a história de Dyar, o bancário que troca Manhattan («Qualquer outra vida seria melhor do que esta») pelos expedientes da zona internacional de Tânger, assenta no impulso que levou Bowles a deixar a América. Nova vida: outra gente, novos padrões morais, a mesma solidão. Dyar é um homem enredado nas contradições do desconhecido e numa sucessão de azares. Bowles teve um percurso diferente, sabemos que sim, mas não é das minudências do quotidiano que falamos. O conflito entre despaisamento e a nova realidade assenta na experiência do autor. É curiosa a insistência num cenário sombrio, por vezes macabro, por parte de alguém que escolheu viver ali mais de meio século. Se, em romances posteriores — A Casa da Aranha é um bom exemplo —, Bowles meteu na ficção acontecimentos políticos concretos (a colonização, o exílio na Córsega imposto pelos franceses ao sultão Maomé V, o avanço da cultura pan-islâmica, o nacionalismo árabe, os dogmas do Islamismo), em Deixa a Chuva Cair é a própria circunstância do autor que está em pauta. Três estrelas. Publicou a Quetzal.

Escrevo ainda sobre a novela Espião na Primeira Pessoa, o livro póstumo de Sam Shepard (1943-2017). Conhecido sobretudo como actor de cinema, Shepard é autor de mais de cinquenta peças de teatro, algumas das quais encenou e interpretou, dezenas de contos e um romance. Vítima de esclerose lateral amiotrófica, Shepard foi obrigado a ditar parte deste livro derradeiro, constituído por 37 capítulos muito breves. Patti Smith, amiga de longa data, editou a versão final da obra. Texto de despedida, narra o ocaso de um homem que passa os dias a ler, num alpendre, enquanto come queijo e bolachas e bebe chá gelado. Um vizinho espia a progressão da doença. Por trás da tensa arquitectura discursiva, é nítida a mão do dramaturgo que sempre foi. (Em 1979, Shepard ganhou o Pulitzer com a peça Buried Child.) Tentativa de captura do tempo, «Como uma crosta muito estaladiça, muito pequena, que se arranha. Está um pouco turvo, este tempo. Não está muito claro para mim.» Sem escapatória: Espião na Primeira Pessoa é o epitáfio deste narrador anónimo. Notável. Cinco estrelas. Publicou a Quetzal.