Hoje na
Sábado.
A notícia chegou domingo à noite, mas John Le Carré morreu no sábado, 12 de Dezembro. Tinha 89 anos e estava internado no Royal Cornwall Hospital com uma pneumonia.
Margaret Atwood e Simon Sebag Montefiore reagiram imediatamente. A escritora canadense foi peremptória: George Smiley, o espião que Chamada Para a Morte (1961) acrescentou à literatura, é «a chave» para a compreensão dos anos da Guerra Fria. Ter em conta que Smiley é o protagonista de dez dos trinta livros publicados por Le Carré até 2019. O historiador foi curto, classificando Le Carré como «o gigante da literatura inglesa».
Mas é um erro supor que John Le Carré foi apenas um brilhante autor de thrillers de espionagem. Le Carré é um dos nomes mais importantes da literatura de língua inglesa em qualquer género. Em 2013, já Ian McEwan havia dito numa entrevista que ele era «o romancista inglês mais importante da segunda metade do século XX […] ilustrando o declínio britânico como mais ninguém.» Com efeito, o facto de ter trabalhado nos serviços secretos britânicos durante 15 anos, primeiro no MI5, depois no MI6 (o mesmo fizeram Somerset Maugham e Graham Greene, para citar apenas dois), apenas o habilitou a descrever, com energia e sarcasmo, aquilo a que chamou o Circo. A fuga de Kim Philby para Moscovo pôs fim a essa fase da sua vida. Ironia suprema: por todo o mundo, os serviços de Intelligence subsumiram como jargão próprio os termos que Le Carré utiliza nos livros que escreveu. Dito de outro modo, a realidade adoptou a ficção. Como sublinha Boyd Tonkin, desde J.R.R. Tolkien que nenhum outro autor criou um «laboratório da natureza humana» de tal envergadura.
Nascido David John Moore Cornwell, a 19 de Outubro de 1931, em Pool, na Inglaterra, escolheu o pseudónimo que o celebrizou. A fama planetária chegou com o terceiro livro, O Espião Que Saiu do Frio (1963), adaptado ao cinema por Martin Ritt. A partir daí, Le Carré entrou na lenda.
Oriundo de uma família problemática — quem leu as memórias coligidas em Túnel de Pombos lembra-se do capítulo sobre Ronnie, «vigarista, fantasista, preso ocasional e meu pai…» —, foi educado em colégios privados, estudou na Universidade de Berna e em Oxford, formou-se em línguas modernas e deu aulas em Eton. Não ter visto a mãe dos 5 aos 21 anos de idade não terá ajudado.
Além do conflito Leste/Oeste, o espectro da obra inclui temas tão diferentes como as “prioridades” da indústria farmacêutica, os trambiques da ajuda humanitária internacional, a queda do Muro de Berlim, o colapso da URSS, o tráfico de pessoas e armas, o expansionismo israelita, o “zelo” securitário que se seguiu ao 11 de Setembro, lavagem de dinheiro, etc. Livros como A Toupeira (1974), O Ilustre Colegial (1977), A Gente de Smiley (1979), Um Espião Perfeito (1986, o mais autobiográfico de todos), O Gerente da Noite (1993), O Nosso Jogo (1995), O Fiel Jardineiro (2001), Amigos Para Sempre (2003), Um Traidor dos Nossos (2010), Uma Verdade Incómoda (2013), para citar apenas alguns, são hoje clássicos. Como escreveu Timothy Garton Ash, em 1999, na New Yorker, «o verdadeiro assunto de Le Carré não é a espionagem, é o labirinto infinitamente enganador das relações humanas…»
Adversário de Trump e Boris Johnson, equiparava-os a mafiosos. No último livro, Agente em Campo, publicado em Outubro de 2019, ambos estão no centro da intriga, que gira em torno do hipotético conluio (encoberto) entre os Estados Unidos e os serviços secretos britânicos, com o intuito de desacreditar a União Europeia… As derradeiras ilusões que tinha com o Reino Unido perdeu-as com o Brexit.
Avesso a homenagens (recusou ser feito Cavaleiro pela rainha), recebeu vários prémios literários, o mais recente dos quais o Olof Palme 2019, que lhe foi atribuído «pela qualidade e humanismo da sua escrita, acerca da liberdade do indivíduo e das questões fundamentais da humanidade.» Casou duas vezes e é pai de quatro filhos (o mais novo é o escritor Nick Harkaway). Vivia na Cornualha há mais de quarenta anos, embora tivesse mantido a casa de Londres, em Hampstead.
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