UM POEMA POR SEMANA — Para hoje escolhi Soneto dum poeta morto de Gomes Leal (1848-1921), nome maior do Segundo Romantismo português. Uma forma como qualquer outra de assinalar o centenário da sua morte.
Natural de Lisboa, Gomes Leal ficou reduzido à legenda do Anticristo (1884), um juízo enviesado, porquanto, como lembrou Sena, a ele se devem «algumas das mais esmagadoras líricas da língua portuguesa.» Publicou o primeiro poema em 1866, na Gazeta de Portugal, fazendo-se logo notar pelo dandismo saturniano. Em 1872, com Luciano Cordeiro, Magalhães Lima, Silva Pinto e outros, fundou O Espectro de Juvenal, jornal satírico onde zurzia os «liberalões corruptos» e a caterva dos «literatos oficiais». Depressa adquire o estatuto de panfletário-mor do republicanismo mais radical: poemas e opúsculos políticos como O Tributo do Sangue e A Canalha, ambos de 1873, fixam a lenda.
Uma vida pontuada por incidentes folhetinescos obnubilou a justa avaliação da Obra. O eco provocado pela divulgação de virulentos panfletos poéticos — de que são exemplo A Traição, O Herege e O Renegado, todos de 1881 —, com a celeuma jornalística que os acompanhou e o inevitável escândalo no milieu político e literário, contribuiu para desviar a atenção do essencial.
Por exemplo, A Traição invectiva directamente D. Luís face à atitude ambígua do rei no tocante à possibilidade, insistentemente referida, da venda (aos ingleses) de Lourenço Marques. Gomes Leal classifica o monarca como salafrário, pandilha, assassino e ladrão, esgotam quatro edições, mas o poeta acaba na prisão, destino fatal para quem escolhera dar prioridade ao combate ideológico, questionando a Igreja, os fundamentos da monarquia, a pessoa do rei e as instituições burguesas.
Em 1881 escapou ileso de um atentado e, no ano seguinte, começou a publicar A Orgia, mensário de Política, Literatura e Costumes.
Com a morte da mãe, em Maio de 1910, Gomes Leal converte-se ao catolicismo e rende-se à monarquia que tão insistentemente combatera. Devorado pelo álcool, desencantado com os homens, as convicções estilhaçadas, encontra-se sozinho e na miséria. Uma diatribe em verso contra Afonso Costa, Pátria e Deus e a Morte do Mau Ladrão (1914) tem o simbolismo do último estertor. Passou a viver da caridade alheia, dormindo em bancos de jardim.
Até que um grupo de escritores, liderado por Pascoaes, subscreve um apelo a seu favor e, em 1916, o Parlamento vota a atribuição de uma tença anual de 600$00 (importância significativa para a época). Era hóspede do socialista Ladislau Batalha quando, em Janeiro de 1921, morre meio louco.
Natália Correia e Herberto Helder meteram-no em antologias por si organizadas: O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973, Natália) e Edoi Lelia Doura (1985, Herberto). Natália não fez a coisa por menos: devemos-lhe «o mérito surrealizante de reacender o facho da revolta luciferina contra o tirânico policiamento da racaille tonsurée.» Contudo, continua a ser Vitorino Nemésio o principal dos seus antólogos.
Este texto aproveita passagens do que sobre Gomes Leal escrevi em Metal Fundente, o livro de ensaios que publiquei em 2004.
O poema desta semana pertence a Claridades do Sul (1875). A imagem foi obtida a partir da edição que José Carlos Seabra Pereira organizou deste livro, para a colecção Obras Clássicas da Literatura Portuguesa. O volume foi publicado pela Assírio & Alvim em 1998, assinalando os 150 anos do nascimento do autor.
[Antes deste, foram publicados poemas de Rui Knopfli, Luiza Neto Jorge, Mário Cesariny, Natália Correia, Jorge de Sena, Glória de Sant’Anna, Mário de Sá-Carneiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberto Helder, Florbela Espanca, António Gedeão, Fiama Hasse Pais Brandão, Reinaldo Ferreira, Judith Teixeira, Armando Silva Carvalho, Irene Lisboa, António Botto, Ana Hatherly, Alberto de Lacerda, Merícia de Lemos, Vasco Graça Moura, Fernanda de Castro, José Gomes Ferreira e Natércia Freire.]
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