quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

ANA MARGARIDA & RHODES


Hoje na Sábado escrevo sobre Pequenos Delírios Domésticos, de Ana Margarida de Carvalho. Depois do universo distópico que caracteriza o seu segundo romance (obra que a levou a bisar o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores), a autora regressa ao real com este livro de contos que leva por título um verso “roubado” a Sérgio Godinho. À laia de prefácio, Chão zero dá testemunho da devastação que assolou o país durante os incêndios de Outubro: «A minha infância é um esgoto atravancado de detritos.» A casa dos bisavós perdida num mar de cinza. Com invulgar economia retórica, e muita eficácia, a frase-síntese diz tudo. Um poema da autora, Apfelstrudel, separa esse texto de abertura do resto do livro. Estamos agora no centro das periferias desapossadas: os prédios-gaiola com as suas «vidraças enjauladas» e toda a panóplia Kitsch que dá cor à miséria dos que têm abertura de telejornal garantida, esse microcosmo de onde por vezes saem voluntários para as madrassas do ódio. Manuel, ou Man-hu-el (o rapaz convertera-se), foi um deles. A Síria pareceu-lhe uma boa solução para virar costas à disfunção familiar. Era isso ou continuar «aos caídos, a arrumar carros, a assaltar velhotas pensionistas para pagar a próxima dose…» Mas na hora da verdade faleceu-lhe a certeza. E o Chico também não foi capaz. O desfecho é absolutamente português. Não deixa de ser uma ironia que o adjectivo «domésticos» surja no título de um livro cujos primeiros contos estão focados em problemas de natureza planetária, tais como a tragédia das migrações e seus efeitos colaterais. Homens e mulheres, aos milhares, que o Mediterrâneo vai engolindo, depois de terem fugido da guerra, da fome, da escravidão, de toda a sorte de abusos e violências. A ilusão da terra prometida foi-lhes fatal: «E alguns, fiados nesse doce rugir da indulgência, deixam-se ir…» O conflito entre Israel e a Palestina não é esquecido. Ana Margarida de Carvalho tem uma prosa limpa, fluente em vários registos, dotada de vocabulário anterior ao regime tuiteiro. Sirvam de exemplo contos como Uma Vida em Centrifugação ou, mais denso, Os Elefantes Têm Sismógrafos nos Pés. Quatro estrelas e meia. Publicou a Relógio d’Água.

Escrevo ainda sobre Instrumental, a polémica autobiografia de James Rhodes (n. 1975), o pianista. Depois da querela judicial intentada pela ex-mulher, o livro pôde finalmente publicar-se. O facto de Rhodes não omitir os abusos sexuais sofridos em criança, fonte de danos na coluna vertebral e do stress pós-traumático que o atormentou durante anos, foi o argumento usado, pois poderia perturbar o filho. Lendo as páginas 99 e 100 percebe-se porquê. Por fim, um tribunal superior desatou o nó e o livro saiu. Ainda bem, porque é o relato desassombrado de um artista que foi ao fundo e conseguiu voltar à tona: «O abuso sexual na infância tem o efeito imediato de nos decepar uma perna…» O leitor não pode deixar-se iludir pelo índice. Por trás dos títulos dos capítulos (obras de música clássica) estão histórias muitas vezes chocantes, narradas com desembaraço, ironia e, podemos dizê-lo, elegância. A superioridade moral dos ‘militantes’ das redes sociais, a cultura da celebridade, o uso de drogas, a hipocrisia da opinião pública relativamente aos casos de pedofilia, os transtornos psicológicos, e outros temas, preenchem páginas bem conseguidas. Mas também ficamos a conhecer a história das Variações Goldberg, de Bach. Cinco estrelas. Publicou a Alfaguara.

BEST OF INTERNACIONAL 2017


As minhas escolhas estrangeiras de 2017, publicadas hoje na revista Sábado. Três romances, uma biografia e uma colectânea de ensaios.

Celebrado como contista, George Saunders estreou-se no romance com Lincoln no Bardo. Em registo tardo-modernista, o livro ficciona a depressão sofrida por Abraham Lincoln após a morte do terceiro filho. A sintaxe desconcerta, a filiação à literatura do absurdo obscurece por vezes a narrativa, mas o leitor deixa-se levar pelos fantasmas que assombram a obra.

Toda a gente ouviu falar de Nathan Zuckerman, o protagonista de nove romances que Philip Roth publicou entre 1979 e 2007. O Escritor Fantasma inaugurou a série, mas chegou ao nosso país depois dos outros. Digressão sobre as origens judaicas do autor, a cena literária de Manhattan, a vida americana nos fifties e as contingências do sexo, o livro é um prodígio de sarcasmo em prosa de primeiríssima água.

Romance em três partes, O Teu Rosto Amanhã é provavelmente a obra mais famosa do espanhol Javier Marías, eterno nobelizável. Oscilando entre presente e passado, cruzando toda a sorte de referências culturais, políticas e sociológicas, o virtuosismo do autor faz um tour d’horizon ao século. Os volumes subtitulam-se, respectivamente, Febre e lança / Dança e sonho / Veneno e sombra e adeus. Notável.

A biografia de Nelson Rodrigues escrita por Ruy Castro é um monumento do género. Nelson, dramaturgo, cronista, romancista, contista, repórter e guionista, não foi um personagem liso, e é provável que só Ruy Castro estivesse à altura de pôr em letra de forma a vida do homem controverso que fez o teatro brasileiro entrar no século XX. A vários títulos, O Anjo Pornográfico é um capítulo da História do Brasil.

Seguir o raciocínio de George Steiner, o último renascentista vivo, releva do puro prazer. A selecção de 28 ensaios publicados na revista New Yorker, entre 1967 e 97, corroboram o papel central do autor no pensamento crítico dos últimos 60 anos. Soljenítsin, Orwell, Céline, Borges, Chomsky, Brecht, o caso Anthony Blunt visto sob nova luz, etc., são dissecados com a ‘força bruta de inteligência’ com que Steiner agarra o leitor da primeira à última página.

BEST OF NACIONAL 2017


As minhas escolhas de ficção nacional publicadas hoje na revista Sábado.

Chegada tarde à vida literária, Cristina Carvalho tem vindo a impor-se à revelia dos lobbies instalados. Rebeldia, o seu romance mais recente, conta a história de uma mulher que, no auge do salazarisno, decide ser senhora do seu destino. Narrado com a tinta forte do realismo sem filtro, o romance tem passagens de rara violência verbal, carga sexual incluída.

Com uma escrita limpa e polida até ao osso, Bruno Vieira Amaral é das vozes mais assertivas da ficção nacional — ao ponto de ter inscrito o Bairro Amélia no cânone. Hoje Estarás Comigo no Paraíso demonstra como, a partir de uma grelha autobiográfica habilmente ficcionada, o romance coloca ao leitor questões da sua própria contemporaneidade.

O romance de estreia de Dulce Garcia, Quando perdes tudo não tens pressa de ir a lado nenhum, confirmou a vitalidade da ficção nacional escrita por mulheres. Numa prosa seca, isenta de autocomplacência, a autora ilustra o terreno movediço de todos os interditos: sexo, droga, violência e disfunções familiares, atrito conjugal. Epítome do estranhamento, a  ‘mulher do saco’ entrou assim na galeria das heroínas de ficção.