Hoje na Sábado.
Com as livrarias entupidas, há muito por onde escolher em todos os géneros literários. Seleccionei seis títulos: a biografia ficcionada de Augusto, um thriller centrado no Vaticano, o primeiro volume de uma trilogia famosa, um clássico irlandês, uma viagem ao inferno das crianças adoptadas e um policial heterodoxo.
Começar por um clássico, Augustus, última obra do norte-americano John Williams (1922-1994). Até à tradução de Stoner, feita com 50 anos de atraso, Williams era praticamente desconhecido do público português. Depois, aqui como em toda a parte, tornou-se muito citado. Augustus, que em 1973 venceu o National Book Award de Ficção, justifica todas as expectativas. Trata-se da biografia do filho adoptivo de Júlio César, ou seja, do homem que se tornou o primeiro imperador romano. Utilizando a forma epistolar (Cícero é um dos correspondentes), Williams traça o quadro das relações de força do império, tendo Roma como epicentro. Uma narrativa viciante. Publicou a Dom Quixote.
Mantendo Roma como ponto de referência, mas noutro registo, David I. Kertzer (n. 1948) escreveu um romance sobre O Rapto de Edgardo Mortara. Ou seja, ficcionou a história do rapaz judeu raptado em Bolonha, em 1858, pelo Santo Ofício, tornando-se protégé do Papa Pio IX. Factos que abalaram a Europa da época — Napoleão III tomou parte na controvérsia — e ainda hoje suscitam querela. Encontra-se em fase de produção um filme de Spielberg sobre o caso. Kertzer, especialista em história vaticana, recebeu o Pulitzer de 2015 por The Pope and Mussolini: The Secret History of Pius XI and the Rise of Fascism in Europe. Porém, O Rapto de Edgardo Mortara não é um ensaio histórico, é um thriller inspirado em factos verídicos. Publicou a Presença.
Quem prefira ficção pura deve ler O Jornalista Desportivo, de Richard Ford (n. 1944), romance que volta às livrarias com nova tradução. É o primeiro volume da famosa Trilogia Bascombe, na realidade um quarteto, pois saiu um quarto volume. Tudo gira em torno de Frank Bascombe, escritor em crise: morte do filho Ralph, divórcio, relações equívocas. Embora se trate de uma ficção sombria (a instituição familiar não escapa à mordacidade), Ford, voz ímpar da literatura contemporânea, prende o leitor ao longo de quatrocentas páginas. Publicou a Porto Editora.
O triplo homicídio de uma mulher, do filho de três anos, e de um padre, crime que chocou a Irlanda em 1994, serviu de pretexto para Edna O’Brien (n. 1930) escrever o portentoso Na Floresta. Romancista, contista, dramaturga, poeta e ensaísta, O’Brien é considerada a mais importante escritora irlandesa viva, tão hábil a escrever sobre o IRA como sobre as idiossincrasias sexuais da sociedade irlandesa (a trilogia Country Girls é um clássico do feminismo avant la lettre). No romance, Mich O’Kane, o kinderschreck perturbado por sucessivos abusos, ocupa o lugar que na vida real foi o de Brendan O'Donnell. O mesmo sucede com outros personagens, mas o plot segue a par os acontecimentos. Quem melhor do que O’Brien para transformar o horror em literatura? Publicou a Cavalo de Ferro.
O que significa adoptar uma criança? As agressões físicas e psicológicas ocorrem exclusivamente nas famílias de integração? Serão as casas de acolhimento eufemismos de guetos? A lei como tábua de salvação? Foi para responder a estas e outras perguntas que Patrícia Reis (n. 1970) escreveu As Crianças Invisíveis. Não é uma narrativa amável. Tratado com seriedade, o tema isenta-se de pieguice. A vida como ela é, crua, desapiedada, sem as arestas boleadas. Conceição é o único interstício de afecto que o romance se permite. Acompanhamos o percurso de M. — para cada criança uma inicial —, igual ao de tantos institucionalizados. O adjectivo é uma agressão. A invisibilidade é de regra. Chutado de casa para casa como criatura descartável, bola de pingue-pongue humana, M. terá de crescer sozinho. Ou sozinha? A escrita clara da autora domina com precisão o melindre do inominável. Publicou a Dom Quixote.
Com novo título — está nas salas o filme realizado por Edward Norton —, mas mantendo a tradução original, foi reeditado o livro mais conhecido de Jonathan Lethem (n. 1964), Os Órfãos de Brooklyn, thriller policial que celebrizou o detective Lionel Essrog. Laureado com o prestigiado National Book Critics Circle Award, o livro tem tudo para agradar a quem gostou de O Que Diz Molero, de Dinis Machado (a escala é outra, mas, à boleia da síndrome de Tourette, o delírio semântico tem semelhanças). Lethem já provou ser capaz de fazer melhor. Publicou a Lua de Papel.
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