Hoje na Sábado escrevo sobre O Pianista de Hotel, de Rodrigo Guedes de Carvalho (n. 1963), que regressa ao romance após um intervalo de dez anos. Sem surpresa, a prosa clara dispensa todo o tipo de malabarismos semânticos. Mesmo em sottovoce, o autor impõe uma dicção própria. Foi assim nos romances anteriores e o timbre mantém-se inalterado. Narrador autodiegético, Guedes de Carvalho intromete-se na narrativa com gozo evidente. Percebemos logo nas primeiras páginas que é de solidão e perda que o romance trata. E que o faz sem rodriguinhos, antes com uma escrita segura, elegante, atenta à prosódia da língua: «Luís Gustavo nunca a conheceu, e pela vida fora quase nem falará dela, até que um dia começará a pensar nela, quando já seria tempo de a ter esquecido, as coidas estranhas que fazemos sem lógica.» Guedes de Carvalho é muito hábil na forma como articula os factos descritos com o carácter das personagens. Ao arrepio de tanta prosa contemporânea, a sua ficção organiza-se sem ‘encenação’. Dito de outro modo, sem piscar o olho ao ar do tempo. O low profile é ilusório. Por várias vezes a narrativa deflagra em violência crua: «— Não passa de hoje vais dizer onde mora esse filho da puta...» A trama envolve sexo, bullying, imprevistos hospitalares, homossexualidade (o episódio do supermercado é deveras polissémico), violência doméstica, disfunção conjugal, morte, psicanálise, etc. Em suma, a vida como ela é. No fim, tudo conflui para o mesmo ponto, um conhecido hotel da Linha de Cascais. A sólida arquitectura romanesca dá a medida dos recursos do autor. Coisa rara na literatura portuguesa, as cenas de sexo são plausíveis e, graças à utilização correcta dos verbos, bem esgalhadas. Bem calibrado, o discurso não evita o vernáculo da oralidade. Poderá soar rude a espíritos mais sensíveis, mas nunca a linguagem comum foi decalcada de um missal. O fundamentalismo politicamente correcto vai torcer o nariz a certas passagens (a persona do autor potenciará esse condicionamento), mas a literatura não pode deixar-se capturar pela assepsia. O menos importante de tudo é o pianista do hotel. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.
Escrevo ainda sobre a publicação, em edição de bolso, de Sinais de Fogo, de Jorge de Sena (1919-1978). Um acontecimento. Trata-se de um dos romances mais importantes do século XX português, sucessivamente reeditado e esgotado desde 1979. Retrato ácido da educação sentimental dos jovens adultos de 1936, com a Guerra Civil espanhola em pano de fundo, Sena põe em pauta o Portugal salazarento e uma panóplia de interditos que vão da inscrição política à hipocrisia dos costumes. Tudo se passa no ambiente da burguesia bem instalada da Figueira da Foz, que fazia vista grossa à pesporrência do Estado Novo (actuação da Pide incluída) e a questões de natureza sexual. Alter-ego de Sena, o protagonista, Jorge, disseca com minúcia aquele peculiar microcosmo. O acento tónico incide no grau de ‘tolerância’ face à identidade sexual de alguns personagens, em particular Rufino e Rodrigues. É deveras eloquente o episódio do ménage à trois entre Jorge, Luís e uma prostituta: «a mulher não tinha tido importância, a mim é que ele, de uma maneira ou de outra, escolhera.» Destinado a ser o primeiro volume da saga romanesca Monte Cativo, projecto abortado por morte de Sena, Sinais de Fogo é uma obra-prima. Cinco estrelas. Publicou a Livros do Brasil.