Hoje na Sábado.
A partir da morte de Hamnet Shakespeare, Maggie O’Farrell (n. 1972) escreveu Hamnet, romance inspirado na vida do bardo com Anne Hathaway. É a história de um casal de Stratford-upon-Avon. O’Farrell diz apenas: «Cerca de quatro anos depois, o pai escreveu uma peça chamada Hamlet.» (O mesmo nome escrevia-se nas duas formas.) É desconhecida a causa da morte de Hamnet, mas no romance é vítima da peste. Quando o filho morre, já Shakespeare estava estabelecido em Londres. Portanto, tudo gira em torno de Anne e dos filhos. Mais exactamente, sobre o luto da mulher que se sente responsável pela morte do filho de onze anos. Sem beliscar factos históricos, a narrativa é deveras empolgante. Com Hamnet, O’Farrell ganhou o Women’s Prize for Fiction 2020.
Com nova tradução, temos de volta Olá, América!, uma das distopias mais famosas do inglês J.G. Ballard (1930-2009). Publicado pela primeira vez em 1981, o livro “antecipa” o apocalipse dos Estados Unidos nos anos 2100, após um colapso ambiental (a Rússia barrou o Estreito de Bering que liga o Pacífico ao Ártico) e financeiro de proporções bíblicas. Com Charles Manson na Casa Branca e dois terços dos norte-americanos expatriados na Europa e na Ásia, um grupo de aventureiros parte de Inglaterra para averiguar o que se passa do outro lado do Atlântico. Excessivo, irónico, mordaz, por vezes burlesco, Olá, América! é uma visão dantesca do fracasso do sonho americano.
Com A Anomalia, Hervé Le Tellier (n. 1957) venceu no ano passado o Prémio Goncourt. O livro foi agora traduzido por Tânia Ganho, que encontrou o registo certo do thriller. Dividido em três partes, sinalizadas por versos de Queneau, A Anomalia é uma sucessão de narrativas escritas de acordo com o perfil das respectivas personagens, muito diferentes entre si. Tudo se passa num voo entre Paris e Nova Iorque, mas podia ser num festival literário, tantas são as referências literárias (nomes, citações, trocadilhos, opinião). Ficcionista, ensaísta e colunista político, Le Tellier é o paradigma do intelectual público francês. Mérito maior: ao contrário de outros laureados da sua geração, o que escreve não provoca enfado.
A ficção identitária vive um momento alto, e A Outra Metade de Brit Bennett (n. 1990) é do melhor que tem sido escrito sobre interditos étnicos. Em Mallard, a cidade do romance, ninguém se casava com gente escura. Até aqui, nada que o inventário do racismo não ilustre. O ponto é outro: de forma a ficarem cada vez mais claros, os negros de Mallard fazem casamentos mistos. Com dezasseis anos, as gémeas Vignes fogem da cidade após o linchamento do pai. Contudo, enredam-se noutro tipo de contradições. Stella casa com um branco desconhecedor das suas origens, e Desiree regressa à cidade com uma filha negra como o alcatrão. Estamos nos anos 1950, no auge do segregacionismo. A saga prossegue até aos anos 1970, com as filhas de ambas em confronto com novas realidades (a transexualidade, etc.) e perspectivas de vida opostas. Brit Bennett é um nome a fixar.
Pode um irlandês, radicado em Nova Iorque, ficcionar o quotidiano da Palestina? Foi o que fez Colum McCann (n. 1965), professor do Hunter College. O livro tem um título estranho, Apeirogon, que significa polígono infinito. McCann conta a história de dois homens, um judeu e um palestiniano, unidos pelo denominador comum de terem perdido as filhas pré-adolescentes: em 1997, Smadar, 13 anos, vítima de bombistas suícidas; em 2007, Abir, 10 anos, com um tiro na nuca. Não são personagens de ficção, isto aconteceu. Os factos foram «compilados a partir de uma série de entrevistas em Jerusalém, Nova Iorque, Jericó e Beit Jala», embora o autor tenha arredondado o discurso. Ao longo de mil e um capítulos (Mitterrand e família, amante incluída, surgem no sexto), como nas mil e uma noites do clássico árabe, McCann tenta expor o absurdo do conflito que opõe os dois Estados. São muitas as derivações de tema e sentido, da Flauta Mágica à Mossad. Vários capítulos resumem-se a uma única linha. Também há ilustrações. Como refere o subtítulo, trata-se de viagens infinitas.
A italiana Rosa Ventrella regressa com A Maledicência. Quem gostou de História de Uma Família Decente vai gostar deste regresso ao coração da Apúlia. Tendo a Segunda Guerra Mundial em pano de fundo (e, mais tarde, a reforma agrária), o romance opõe a fome e a moral, no registo fluente a que a autora nos habituou.
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