terça-feira, 29 de dezembro de 2015

ATTICUS LISH


Hoje na Sábado escrevo sobre Preparação Para a Próxima Vida, de Atticus Lish (n. 1972). Não é todos os dias que um estreante vence o prémio PEN/Faulkner de Ficção. Foi o que sucedeu com Atticus, filho de Gordon Lish, um dos editores mais influentes de Manhattan, e fazer parte do Meio literário ajuda. Atticus teve um percurso heterodoxo: entrou e saiu de Harvard, andou “fora dos eixos”, serviu na Marinha, trabalhou como operário, esteve de relações cortadas com o pai durante doze anos (após a morte da mãe), voltou à universidade, casou com uma coreana, viveu e leccionou inglês na China, etc. Por último mas não em último, levou cinco anos a escrever Preparação Para a Próxima Vida. Garante que o fez à mão. A prosa dá notícia de uma voz singular: «Então digam-me como se diz que o céu é alto», quer saber Zou Lei, a imigrante ilegal, co-protagonista do romance. Meia dúzia de páginas chegam para intuir que vamos mergulhar numa saga de gente desapossada à mercê de todo o tipo de abusos e arbitrariedade. Em suma, a história dos que vivem nas margens. É esse o material de Atticus. Se fosse nosso contemporâneo, Dickens disputaria o mesmo território. Nenhum glamour nimba a Nova Iorque de Atticus. Tudo se passa depois do 11 de Setembro, sob o signo da Lei Patriótica e das irregular renditions (acto de fazer circular “insurgentes” entre dois ou mais países, interrogando-os sob tortura) que permitem, por exemplo, a transferência de suspeitos de terrorismo de New Haven para o Egipto ou Israel, com o à-vontade de quem muda um prisioneiro de Brooklyn para Queens. É dessa América que perdeu a alma que o livro trata. Certo didactismo sobre a China («Dentro de trinta ou quarenta anos, vamos conseguir vencer a América ou a Rússia») não belisca o plot. Um dia, Zou encontra Skinner, antigo soldado no Iraque, lá onde nada fazia sentido, por ser «o país deles», e Skinner, não sendo um deles, depressa se deteriorou. Descrita em grande angular, a guerra prescinde de ênfase. Apenas factos: desespero, atrocidades, esquadrões da morte à revelia dos códigos de conduta. Skinner sobrevive (com stress pós-traumático) a três comissões. Zou apanha por tabela. Preparação Para a Próxima Vida é um retrato do lumpemproletariado de Nova Iorque, sendo Zou e Skinner guias desse submundo onde a violência policial dita as regras. Cerca de quinhentas páginas sobre o tema podiam dar azo, noutras mãos, a um exercício fútil de propaganda ou complacência. Não é o caso. Quatro estrelas e meia.

Escrevo ainda sobre a reedição, acrescentada de inéditos, de Não Percas a Rosa..., de Natália Correia (1923-1993). Não é segredo que a autora, tendo sido perseguida pelo Estado Novo, foi uma opositora declarada da deriva esquerdista em que o país mergulhou entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975. Muito poucos a acompanharam nessa luta. Cesariny e Vergílio Ferreira foram duas excepções. Como o essencial desse “combate” se fez na imprensa, importava coligir os textos dispersos. É essa lacuna que este livro vem preencher. Dividido em duas partes, junta Não Percas a Rosa, o Diário, agora reeditado, e Ó Liberdade, brancura do relâmpago, as crónicas do PREC. Nos dois casos, apêndices com manuscritos inéditos. Retratos e fac-símiles ilustram o volume, organizado e anotado com critério por Vladimiro Nunes. Se o Diário é eloquente no tocante ao desassombro da autora, as crónicas têm o alto teor de corrosão que se espera de textos de intervenção política imediata. Os inéditos dão notícia de factos desconhecidos: golpes combinados entre Spínola e Kaúlza, o rapto de um inspector da Pide, etc. Natália nunca pediu licença para dizer o que quis. Isso a distinguia da intelligentsia bem comportada. Quatro estrelas. Editou a Ponto de Fuga.