Hoje na Sábado.
Com Herança, a norueguesa Vigdis Hjorth (n. 1959) tornou-se uma das autoras mais discutidas da literatura europeia contemporânea. Vigdis começou pela literatura infantil, mas de seguida publicou cerca de trinta romances, sendo a Herança o primeiro a chegar à edição portuguesa.
No ano em que foi publicado (2016) o livro gerou controvérsia pela sua natureza autobiográfica. À laia de recado, a autora cita A Festa, o filme de Thomas Vinterberg. Na Noruega, foram muitos os que reconheceram no plot nada menos que três gerações da família Hjorth. Vigdis foi acusada de usar diverso material privado, como por exemplo correspondência familiar. A irmã, Helga, até publicou a sua versão dos factos, num livro que foi um bestseller. E a mãe de ambas processou a companhia de teatro que encenou uma adaptação da obra.
Relatos de sordidez familiar não são novidade em literatura. Os noruegueses tinham o precedente de Karl Ove Knausgård, mas o quinteto Melrose, do inglês Edward St Aubyn, continua sem equivalente em matéria de transgressão. Isto dito, a Herança não surpreende pelo tema. O que o distingue é a escrita da autora, nem sempre linear, porém estimulante nos seus avanços, recuos e minúcia descritiva. Certas repetições parecem-me escusadas, mas terá que ver com o discurso obsessivo compulsivo. Curiosamente, críticos de língua inglesa têm falado de Vigdis Hjorth como de um híbrido de Jane Austen e Agatha Christie, com laivos de Ibsen.
Incesto (em criança, Bergljot foi várias vezes abusada sexualmente pelo próprio pai) e disputas patrimoniais entre quatro irmãos constituem uma mistura explosiva. Vigdis Hjorth constrói a narrativa explicando as razões que levam a sua narradora a aliar-se ao irmão mais velho, contra as irmãs mais novas, na querela que o opõe à partilha das casas de férias dos pais. No momento em que decide expor as memórias acumuladas da infância traumática, Bergljot é uma escritora e crítica de teatro, mãe de três filhos adultos, divorciada, há muito afastada do núcleo familiar. A herança é o detonador do conflito. Com prejuízo dos filhos mais velhos, Bergljot e Bård, o testamento do patriarca beneficia as filhas mais novas (menos ausentes da casa-mãe). Sem essa disputa, provavelmente Bergljot não traria à tona o recalque de anos de manipulação e abuso.
Por causa deste livro, há cinco anos que os media e a intelligentsia da Noruega discutem os limites da literatura “da realidade”.
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