sexta-feira, 27 de maio de 2016

NÃO ESQUECER


Há seis semanas que a RTP2 transmite, de segunda a sexta, a série Uma Aldeia Francesa de Philippe Triboit. Cinco episódios por semana. Não me recordo que algum jornal lhe tenha feito referência. Ontem passou o episódio 42, dos 60 que preenchem as seis temporadas concluídas (2009-16). A 7.ª ainda está em produção. Trata da ocupação da França pela Alemanha nazi. Verdade que a série não tem o glamour das grandes produções da HBO. Mas trata de forma assisada, e pedagógica, o drama da França ocupada, as ignomínias de Vichy, o aviltamento da colaboração, a deportação de judeus, a bufaria generalizada, as vidas dos homens e mulheres que fizeram a Resistência, etc. Um elenco muito vasto de que fazem parte, entre outros, Audrey Fleurot, Thierry Godard, Emmanuelle Bach, Robin Renucci, Marie Kremer, François Loriquet, Nade Dieu, Nicolas Gob, Fabrizio Rongione, Patrick Descamps, Martin Loizillon e Richard Sammel. Ora aí está uma série que devia ser exibida nas escolas de ensino secundário. A deriva da Europa actual não se compadece com o branqueamento da História. Nem sequer há o argumento das imagens insuportáveis. A ocupação da França foi um episódio tenebroso, como aqui documentado, mas o horror na sua forma mais exacta foi a Leste, especialmente na Polónia, Balcãs e União Soviética. Portanto não há nada que as ‘crianças’ não possam ver.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

A FEIRA

Telefonema da TSF. O jornalista quer saber o que tenciono comprar na Feira do Livro. Digo-lhe que este ano nem por lá devo passar (não publiquei nenhum livro em 2015), que não gosto da Feira, e que só lá fui a dúzia de vezes em que por obrigação contratual tinha de cumprir o ritual dos autógrafos. Contracorrente? Paciência. Não gosto.

Expliquei porquê: abomino estar sentado ao sol, ficar encharcado dos pés à cabeça porque o toldo do stand não aguentou a bátega, ir a correr para o Hospital da Luz porque a cadeira do Jorge caiu de um estrado com quase um metro, tropeçar em berços do tamanho de caravanas, ficar com um pólo estragado porque uma criança ao colo dos pais deixou cair o gelado em cima de mim, ter que ir ao Ritz se me apetecer urinar, suportar poeira e vento agreste, aturar tontos, etc. Isto dito, das vezes que fui, até tive a companhia de bons amigos, editores e escritores. Não cito nomes porque o risco de esquecer alguém é muito grande. Quanto à Feira, estamos conversados.

CLARICE LISPECTOR


Hoje na Sábado escrevo sobre a integral dos contos de Clarice Lispector (1920-1977), que Benjamin Moser juntou num único volume. São oitenta e cinco. Os que tiveram publicação em volume, mais os avulsos repescados em jornais, revistas e outras publicações, um texto arquivado na Fundação Casa Rui Barbosa, bem como inéditos do espólio. Atentas as variantes ocorridas ao longo do tempo, Moser optou pelas edições originais. Portanto, depois da integral das crónicas, temos Todos os Contos. Clarice é a déracinée típica, a mulher que nasceu na Ucrânia, à época território russo, no seio de uma família judaica, mas foi ainda bebé para o Brasil (a família teve de fugir dos pogroms anti-semitas), onde o pai lhe mudou o nome: Haia virou Clarice. Nessa altura ainda não tinha a nacionalidade brasileira, que só obteve em Janeiro de 1943, já com o curso de Direito concluído, onze dias antes de casar com um diplomata e no mesmo ano em que publicou Perto do Coração Selvagem, o romance de estreia que provocou ondas de choque nos círculos literários mais exigentes. Tinha nascido uma lenda. No prólogo, Moser faz notar que a obra «é o registo da vida inteira de uma mulher, escrito ao longo da vida inteira de uma mulher […] o primeiro registo do género em qualquer país.» É uma afirmação temerária, mas Moser defende-a bem. O volume está dividido em oito partes. Primeiros contos colige os textos escritos até 1941. Laços de Família (1960), A Legião Estrangeira (1964), Felicidade Clandestina (1971), Onde estivestes de noite? (1974) A Via Crucis do Corpo (1974) e Visão do Esplendor (1975), reproduzem as colectâneas homónimas. A fechar, Últimos Contos. Em apêndice, um texto no qual Clarice explica a génese da sua escrita. Deste vasto corpus, quero destacar “Eu e Jimmy”, “A Fuga”, “Amor”, “Uma Galinha”, “Feliz Aniversário”, “O Jantar”, “Preciosidade”, “O Crime do Professor de Matemática”, “O Búfalo”, “Os Obedientes”, “A Criada” e “Melhor do que Arder”. Alguns são clássicos absolutos. Para quem nunca leu Clarice, parecem-me uma boa introdução à obra. Katherine Boo disse: «Senti-me fisicamente abalada pelo seu génio.» O primeiro embate é sempre assim. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Escrevo ainda sobre Tudo o que ficou por dizer, livro de estreia de Celeste NG, americana de origem chinesa, largamente elogiada por parte da crítica mais conspícua. As questões identitárias estão na ordem do dia e o livro põe em pauta os direitos das mulheres e problemas associados à integração de imigrantes asiáticos na sociedade americana. Detonador da intriga: a morte de Lydia, uma adolescente filha de pai chinês e mãe americana. Estamos em 1977, no coração do Ohio. A polícia encontra o corpo num lago. Acidente? Suicídio? A narrativa intercala passado e presente. Professor, o pai tem como prioridade “ser” americano. Dona de casa, a mãe projectou em Lydia as suas próprias aspirações. Os flashbacks compõem dois retratos: o da imigração chinesa nos primeiros anos do século XX, quando o avô de Lydia chegou à Califórnia; e a subalternização das mulheres como norma dos anos 1950. O desaparecimento de Lydia é um pretexto para Celeste NG, ela mesma filha de um casal de cientistas chineses imigrados, questionar os equívocos das relações familiares. Três estrelas e meia. Publicou a Asa.

domingo, 22 de maio de 2016

NOTEBOOK DA GARDUNHA


Os festivais de literatura são todos iguais, embora uns sejam mais simpáticos do que outros. O da Gardunha foi especialmente caloroso. Começou bem, sexta-feira à noite, com um jantar volante na Casa dos Maias, um solar barroco do século XVIII. Dividimos uma mesa no jardim com o embaixador Marcello Duarte Mathias e o Gonçalo M. Tavares. Boa conversa durante umas horas. Reencontrei o Fernando Echevarría que não via desde Paris e o Pedro Loureiro que não via desde que deixou de ser nosso vizinho (ainda tivemos tempo de ir ver a sua exposição de fotografia). Conheci o Fernando Paulouro das Neves e o filho, Ricardo, bem como o Tiago Salazar. Amigos que revi foram vários: Ana Nunes Cordeiro, José Mário Silva, Manuel da Silva Ramos e Rui Lagartinho. Ao longe vi Fernando Dacosta, que desapareceu entre as palmeiras. Havia mais umas trinta pessoas, mas a minha memória já não é o que era. Razões sérias de saúde impediram a ida de Cristina Carvalho, José Viale Moutinho, Manuel Gusmão e Paula Tavares. Sempre atenta, Margarida Gil dos Reis, a alma da organização, zelava por tudo. Passava da meia-noite quando regressámos ao hotel, o Cerca Design House, em Donas.

Por razões de ordem particular, estive no Fundão apenas dois dias. Margarida Gil dos Reis foi uma anfitriã de mão cheia, atenta aos horários e outros pormenores. Ontem, sábado, foi a abertura oficial, no edifício da Moagem, dita Cidade do Engenho e das Artes. Fernando Paulouro das Neves fez as honras da casa e apresentou o poeta e ensaísta espanhol César Antonio Molina (antigo ministro da Cultura de Estanha), que fez uma conferência sobre o tema da ‘caminhada’ em literatura, com enfoque em Cervantes. Como não via Molina há quase trinta anos, foi um reencontro. Seguiu-se a primeira mesa, com Ana Margarida de Carvalho, Fernando Dacosta e Gonçalo M. Tavares. Margarida Gil dos Reis moderou. Tive oportunidade de conhecer Mbate Pedro, poeta moçambicano nascido em 1978, membro da União Mundial dos Escritores Médicos. Seguiu-se o almoço, que juntou oitenta pessoas, distribuídas por oito mesas com dez comensais cada. Na minha ficaram Margarida Gil dos Reis, Marcello Duarte Mathias, José Carlos de Vasconcelos, Paula Morão, Fernando Guimarães, Maria de Lourdes Guimarães, Ricardo Paulouro Neves, mais um jovem que não consegui identificar e, naturalmente, o Jorge, meu marido. Duas horas de boa disposição. Seguiu-se a mesa em que participei, com Paula Morão e Marcello Duarte Mathias, moderada por Maria João Costa. Conversa rápida com Helena Buescu. Depois não vi mais nada, porque tive de regressar a Lisboa. Hoje, domingo, chegam a Clara Ferreira Alves e o Pedro Mexia, mas já não ando por lá.

E agora a parte antipática. Presumo que seja do interesse dos editores vender os livros que publicam. Digo eu, que não sou comerciante. Seria natural que estivessem atentos aos festivais literários e eventos afins. Infelizmente, nem todas as casas editoras pensam assim. Isto para dizer o seguinte: a organização do Festival Literário da Gardunha contactou cinco editores de livros meus, e eu próprio alertei as pessoas certas. Aconteceu o quê? A Dom Quixote, a Tinta da China e a Planeta fizeram o que deviam. Mandaram os livros e eles venderam-se todos: Desobediência, poesia (o primeiro a esgotar); Cadernos Italianos, diário de viagem; e Cidade Proibida, romance. A Quetzal e a Ulisseia assobiaram para o lado. Em vão as pessoas procuraram Um Rapaz a Arder, volume de memórias, e Pompas Fúnebres, colectânea de crónicas. Os livros existem para estar disponíveis. Eu sei que não é de ‘bom tom’ falar destas coisas. Mas esse é o lado para que durmo melhor.

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