sábado, 25 de agosto de 2018

CHIADO


Faz hoje 30 anos e não esqueço o 25 de Agosto de 1988. À época vivia em Cascais, mas trabalhava em Lisboa, onde cheguei por volta das oito da manhã. Para me pôr no Campo Pequeno tive que sair do comboio em Alcântara e apanhar o autocarro do Largo do Calvário que ia sempre a abarrotar com estudantes da Nova. Estupefacção geral. O horror era aquilo, na sua forma mais exacta.

Transcrevo do meu livro de memórias:

Nesse dia fui acordado muito cedo pelo Jorge — O Chiado está a arder. [...] O espectáculo dos Armazéns do Chiado a ruir era indescritível. Aconteceu o mesmo ao Grandella, mas dali não se via. A discoteca Valentim de Carvalho e a Ferrari ficaram reduzidas a carvão. O Martins & Costa, a melhor loja gourmet da cidade, desapareceu do mapa. Havia gente a chorar. [...] Voltei para o ministério com um nó na garganta. À noite, as imagens da RTP estavam longe de transmitir o horror. Durante anos, as pessoas subiam e desciam o Chiado em passadiços de ferro que foram montados na Rua do Carmo e na Rua Garrett. À hora do rush, essas plataformas oscilavam com o peso da multidão. Nos dias de chuva, o Chiado reproduzia o cenário fantasmático de Blade Runner. A reconstrução levou dez anos. Nesse intervalo, uma das poucas razões para voltar ao Chiado era o teatrinho que Mário Viegas dinamizou num anexo do Teatro São Luiz. Nuno Krus Abecasis, o presidente da câmara, convidou Siza Vieira a pôr de pé o novo Chiado, mantendo o desenho das fachadas originais. [...] — Eduardo Pitta, Um Rapaz a Arder, Lisboa: Quetzal, 2013.

Fogo posto, disseram todos: bombeiros, especialistas e polícia. Nunca ninguém pagou pelo crime.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

LUÍS AMARO 1923-2018


Vítima de pneumonia, morreu hoje de manhã o investigador e poeta Luís Amaro, o homem a quem, nos últimos 50 anos, toda a gente recorreu para obter ou certificar uma informação bibliográfica. O Luís sabia tudo.

Oriundo da Portugália, ingressou nos quadros da Fundação Calouste Gulbenkian em 1970. Durante os vinte anos em que trabalhou na revista Colóquio-Letras, o seu número de telefone era disputado no milieu. Colaborou nas mais importantes revistas literárias do século XX português, e publicou dois livros: Dádiva (1949) e Diário Íntimo (2006). Sobre a sua poesia escreveram, entre outros, Jorge de Sena, António Ramos Rosa, Vítor Silva Tavares e Gastão Cruz.

Homem avesso a holofotes, conheceu toda a gente que foi gente a partir de 1940, o que lhe permitia desatar o nó de controvérsias intrincadas. Se fosse inglês (era alentejano) teria publicado memórias explosivas. Tinha 95 anos. Até sempre, Luís.

Clique no belíssimo retrato feito por Luis Manuel Gaspar.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

PRECONCEITO


A transferência, para a SIC, de Cristina Ferreira, apresentadora e directora de conteúdos não informativos da TVI, tem provocado toda a sorte de comentários. No meu mural de Facebook apaguei os de teor xenófobo.

A ver se a gente se entende: eu não vejo os programas de Cristina Ferreira do mesmo modo que não vejo os de Catarina Furtado ou Manuel Luís Goucha. É o tipo de programas que não me interessa. Faz-me confusão o montante envolvido na transferência (um milhão de euros por ano), mas essa confusão decorre de ouvir dizer, em círculos bem informados, que a SIC se debate com graves problemas de tesouraria. Portugal é um mistério insondável.

Agora o que importa. Cristina Ferreira tem 40 anos e origens humildes. Nunca escondeu essas origens, ou seja, nunca escondeu que ajudava os pais, que eram feirantes na Malveira. Portanto, não está na televisão por ter um papá muito cá dos nossos. Licenciada em História e, mais tarde, em Ciências da Comunicação, foi professora do ensino secundário durante dois anos, em Colares e Casal de Cambra. Trabalha em televisão desde 2002. Desde 2013 é directora de conteúdos não informativos da TVI. Lançada em Março de 2015, a revista Cristina é a única revista portuguesa do género que pode medir-se com equivalentes estrangeiros.

Agora vai para a SIC como apresentadora e consultora executiva da direcção-geral de entretenimento (a primeira grande contratação de Daniel Oliveira). Dito de outro modo: sai de um lugar de direcção na TVI para um lugar de direcção na SIC. Vai ganhar mais do que qualquer homem, detalhe que irrita o mulherio.

Fora dos programas que a televisão produz para o povão, Cristina Ferreira é outra pessoa. Eu arriscaria dizer que é mais culta que muitos sabichões de rede social. As pessoas ficaram agarradas à persona que ela criou. Vê-se que não percebem nada de branding.

CRISTINA


É a maior transferência televisiva de sempre. Além de apresentadora, Cristina Ferreira vai ser consultora executiva da direcção-geral de entretenimento da SIC. Um milhão de euros por ano, ou seja, 83 mil euros por mês. Abençoado país que tais artistas tem.

Clique na imagem do Expresso.

DYHOUSE & HILL


Hoje na Sábado escrevo sobre Uma História do Desejo Feminino, de Carol Dyhouse (n. 1948), historiadora social britânica. Como evoluiu o desejo das mulheres? Foi para tentar responder à questão que a autora escreveu este livro. A partir de um vasto elenco de actores, cantores pop e, grosso modo, homens célebres, Carol Dyhouse estabelece, a partir dos anos 1920, uma cartografia do desejo feminino. Sendo certo que o cinema e a música popular foram grandes detonadores da emancipação sexual, não é de estranhar que a autora dedique atenção a homens que fazem parte do imaginário universal (como, entre outros, Rodolfo Valentino, Liberace ou Elvis Presley), bem como a fenómenos de massa, caso da Beatlemania. Uma das conclusões mais curiosas radica no facto de Carol Dyhouse notar, com sageza, que o padrão ideal da masculinidade tem sido associado à figura de actores homossexuais: Richard Chamberlain e Rock Hudson alimentaram as fantasias de donas de casa em todo o mundo, tal como, num registo menos popular, sucedeu com Dirk Bogarde e Montgomery Clift. Noutro plano, o cinema fez de Mr Darcy, protagonista masculino de Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, um arquétipo do herói romântico. Mas nem só o cinema e as bandas rock serviram de indutor e escape do desejo. No início do século XX, a imprensa feminina estabeleceu protótipos: «sheiks, sultões e príncipes estrangeiros, empresários, estrelas de cinema, aristocratas e aviadores.» Beau Brummell, o dândi por excelência, foi imortalizado no cinema por John Barrymore. É um entre vários exemplos de homens públicos que marcaram a representação do desejo das mulheres. As relações entre mulheres brancas e homens negros é outro tópico abordado. Servem de exemplo as ligações amorosas de Paul Robeson, barítono e activista político, com mulheres da alta sociedade britânica (Nancy Cunard e outras), mas também o affair que juntou Leslie Hutchinson, artista de cabaré, e Edwina Mountbatten, mulher do último vice-rei da Índia. Com relevo para a linhagem de mulheres escritoras, o estudo vai até E.L. James e As Cinquenta Sombras de Grey. Inclui iconografia e índice remissivo. Quatro estrelas. Publicou a Quetzal.

Escrevo ainda sobre Nix Fantasmas do Passado, o romance de estreia de Nathan Hill (n. 1978). Distinguir a verdade da mentira é o móbil do romance. A narrativa cobre o período que vai dos motins estudantis da Primavera de 1968, até ao aparecimento do Occupy Wall Street, no fim do Verão de 2011. Hill levou dez anos a concluir o livro. O resultado é um tour d’horizon pela América actual. Um dos personagens é o político republicano Sheldon Packer, em quem todos identificam a representação literária de Trump. Tal como na vida real, a ‘verdade’ de Packer não coincide com os factos. E Packer também não tolera imigrantes. Samuel Andresen-Anderson, o protagonista, é um escritor falhado que volta a saber da existência da mãe quando as televisões dão notícia de que, «num ataque pérfido», uma professora radical hippie tinha atingido a córnea direita do governador Packer. Para alguém que ocupava 40 horas por semana a jogar World of Warcraft, o atentado de Grant Park, em Chicago, muda tudo. A contracultura já não é o que era. Três estrelas. Publicou a Presença.

PANTEÃO?

A Sociedade Portuguesa de Autores quer ver José Afonso no Panteão. A família do cantor desconhecia a démarche e está contra. A SPA não tem mais que fazer? Resolver o imbróglio dos direitos de autor em sede de IRS, por exemplo.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

TRUMP & COHEN


Michael Cohen, advogado de Trump, confirmou ao Tribunal Federal de Manhattan ter pago o silêncio de duas mulheres com quem o actual Presidente manteve relações: Stormy Daniels, actriz porno, e Karen McDougal, modelo da Playboy. Participei nesta conduta com o objectivo de influenciar a eleição, disse.

Tudo se passou durante a campanha de 2016. Cohen é acusado de financiamento ilícito e fraude fiscal. Como o dinheiro era de Trump, e os pagamentos foram efectuados por sua ordem, a confissão (obtida no âmbito de um acordo com a Justiça) coloca o Presidente em situação delicada.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

DESEMPREGO


Desde Julho de 2002 que não havia tão poucos desempregados (inscritos nos centros de emprego) em Portugal. Nessa altura eram 326 mil, hoje são 330 mil. Não esquecer que, entre 2012 e 2014, foram cerca de um milhão.

Clique na imagem do Expresso.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

ELE TAMBÉM


Asia Argento, uma das treze mulheres que em 2017 acusaram o produtor Harvey Weinstein de abuso sexual, quis comprar o silêncio do menor abusado por ela, em Maio de 2013. A vítima, o actor e músico de rock Jimmy Bennett, tem hoje 22 anos. Mas no dia do abuso tinha 17, ou seja, era um menor face à lei da Califórnia, onde a autodeterminação sexual só se atinge aos 18. Depois de ajudar a fundar o movimento MeToo, a viúva de Anthony Bourdain tentou subornar Jimmy com 380 mil dólares. Perturbado com a repercussão traumática do caso Weinstein, o jovem actor exige agora uma indemnização de 3,5 milhões de dólares, a título de «sofrimento emocional, assalto e agressão». Asia Argento, que se gabava de liderar o campo de caça a Weinstein, tem oportunidade de provar o próprio veneno.

Clique na imagem do New York Times.

domingo, 19 de agosto de 2018

AINDA LE PEN

Leio por aí que Marine Le Pen não pode ter tratamento diferente do concedido a Yanis Varoufakis, que veio a Lisboa defender os seus pontos de vista. Inteiramente de acordo. Há um porém: que eu saiba, o antigo ministro grego não onerou a fazenda nacional. Veio a convite de uma agremiação política.

O que sucederia com a líder do Rassemblement National era outra coisa. Porquê? Porque a Web Summit é largamente subsidiada pelo Estado português. O senhor Paddy Cosgrave não escolheu Lisboa por gostar de sardinhas. Escolheu Lisboa porque, aqui, gasta um terço do que gastaria em Madrid ou um sexto do que gastaria em Londres. É tão simples como isso.

Os contribuintes portugueses não têm de subsidiar os statements da senhora Le Pen, nem, evidentemente, os de Varoufakis. No dia em que uma instituição privada, ou um conjunto de cidadãos reunidos em crowdfunding, decidir convidar a senhora, o caso muda de figura. Eventos patrocinados com os nossos impostos e as nossas taxas camarárias é que não.