UM POEMA POR SEMANA — Para hoje escolhi o primeiro poema de Adolescente, livro com que António Botto (1897-1959) inicia Canções, conjunto de quinze livros publicados entre 1921 e 1941.
Como corolário de uma violenta campanha de imprensa, a Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa teve força para impor ao Governo Civil a apreensão, e ulterior auto-de-fé, da segunda edição (1923) de Canções. O manifesto dos estudantes das escolas superiores deu azo ao famoso contra-manifesto de Álvaro de Campos, Aviso por Causa da Moral.
Natural do Casal da Concavada, Abrantes, Botto nasceu em meio proletário, vindo viver para Lisboa em 1902, ainda D. Carlos era rei. Criado em Alfama, sem educação formal, nómada dos bairros populares, homossexual notório, aspirante a actor, ajudante de livraria, modesto funcionário público entre 1924 e 1942 (o primeiro ano em Angola), mitómano, tudo o afastou do padrão de respeitabilidade do seu tempo. É irrelevante discutir se tinha 15 ou 17 anos quando se estreou. A obra começa em 1921, ano em que sai a primeira edição de Canções, com prefácio de Teixeira de Pascoaes.
Admirado sem reservas por Pessoa, Régio, Aquilino, Nemésio, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Teixeira-Gomes, Ferreira de Castro, Adolfo Casais Monteiro, José Gomes Ferreira, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Ruy Belo e outros, abateu-se sobre Botto um silêncio de quase meio século (anos 1940-90). O resgate da obra deve-se a Joaquim Manuel Magalhães, Fernando Cabral Martins, Fernando J.B. Martinho, Carlos Mendes de Sousa, Fernando Pinto do Amaral e, mais recentemente, a Anna M. Klobucka.
Botto foi expulso da Função Pública em 1942, sem direito a pensão, por, alegadamente, recitar poemas durante as horas de serviço e dirigir galanteios a um colega. O despacho consta do Diário do Governo, II Série, n.º 262, de 9 de Novembro desse ano.
Além de poesia, na qual incluo Cartas Que Me Foram Devolvidas (sequência em prosa integrada em Canções desde 1941), Botto escreveu contos infantis, peças de teatro, bem como narrativas de vária índole. Em co-autoria com Pessoa organizou a Antologia de Poemas Portugueses Modernos, com edição parcial em 1929, e integral em 1944. Foi reeditada em 2011, com prefácio meu.
A 17 de Agosto de 1947, data do seu 50.º aniversário, partiu para o Brasil na companhia de Carminda da Conceição Silva Rodrigues, mulher com quem coabitava desde 1929. Como tantos homossexuais da sua geração, Botto arranjou uma mulher para lhe servir de criada. Nove anos mais velha do que Botto, Carminda terá sido contratada como enfermeira, mas acompanhou-o até à morte.
A vida no Brasil foi uma espécie de buraco negro. Estão documentados convívios com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Érico Verissimo (um trio de gigantes) e outros intelectuais brasileiros, mas o desenraizamento persistiu. Crescentes dificuldades materiais, decisões editoriais equívocas, azares pessoais, rápida progressão da sífilis, crise de fé nos anos 1950 — o que explica um livro como Fátima —, etc., tudo contribuiu para a débâcle.
A morte chegou de forma inesperada: a 4 de Março de 1959 foi atropelado por uma viatura do Estado, na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro. Após doze dias em coma, morreu no dia 17, com 62 anos de idade. Dois meses depois da sua morte, a Ática publicou o livro derradeiro, Ainda Não Se Escreveu. Reconhecida como “viúva”, Carminda passou a receber uma pensão do Estado brasileiro. Foi ela quem enviou o espólio do poeta para a Biblioteca Nacional de Portugal.
Os restos mortais de Botto vieram para Lisboa em 1966, estando depositados no Cemitério do Alto de São João, acto a que assistiram Régio, vindo expressamente de Vila do Conde, Ferreira de Castro, Natália Correia, David Mourão-Ferreira e alguns amigos pessoais. A trasladação fora feita contra a vontade de um grupo de “notáveis”.
Como acima vai dito, o poema desta semana abre Adolescente. A imagem foi obtida a partir de Poesia, volume da sua poesia completa, por mim editado (introdução, notas, variantes, fixação de texto e cronologia), e publicado pela Assírio & Alvim em 2018.
[Antes deste, foram publicados poemas de Rui Knopfli, Luiza Neto Jorge, Mário Cesariny, Natália Correia, Jorge de Sena, Glória de Sant’Anna, Mário de Sá-Carneiro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Herberto Helder, Florbela Espanca, António Gedeão, Fiama Hasse Pais Brandão, Reinaldo Ferreira, Judith Teixeira, Armando Silva Carvalho e Irene Lisboa.]
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