sábado, 21 de abril de 2018

A INVICTA


Tendo visitado o Porto umas seis dúzias de vezes, nunca ali tinha permanecido cinco dias seguidos. Gostei francamente da experiência. O Porto que me era familiar circunscreve-se ao eixo Campo Alegre/Foz, porque é lá que moram os amigos e, por essa razão, a deslocação para o downtown revelou outra cidade. Verdade que o downtown de 2018 não é o de 1988. Obras de reordenamento urbano, limpeza, recuperação de edifícios, comércio de qualidade, oferta de hotéis, cafés restaurados com bom gosto, esplanadas, tudo contribui para fazer do Porto actual uma cidade convidativa.

Fiquei fã da zona de Sá da Bandeira. E descobri a Rua das Flores, onde fica a Ourivesaria Alliança, durante décadas a maior da Península Ibérica. Os lisboetas conhecem a Alliança da Rua Garrett, mas a casa-mãe, fundada em 1925, embora já não disponha dos cinco andares originais, tem uma elegante casa de chá no piso térreo. Quem for avesso a baixelas e cristais pode ir ao Mercador Café fazer uma refeição ligeira ou beber um copo em ambiente simpático e civilizado. Os bibliófilos encontram dois alfarrabistas, sendo um deles o famoso Chaminé da Mota. A Igreja da Misericórdia merece uma visita, bem como o MMIPO (museu da Misericórdia) e a Chocolataria das Flores. Uma dúzia de barzinhos frequentados por malta nova, trendy, e franceses estruturalistas, dão um toque de cosmopolitismo soixante-huitard. No topo Sul fica o Largo de São Domingos, com esplanadas e a cara lavada. Dois restaurantes merecem atenção: o Traça e o LSD, especialmente o primeiro, que entrou para a minha lista portuense.

É evidente que o centro histórico do Porto não se resume à Rua das Flores, mas foi a zona mais agradável que visitei. Quanto à Rua de Santa Catarina, outrora aprazível, está transformada numa espécie de Chinatown, não tanto pelas lojas, pois há de tudo, mas pelo tipo de esquizofrenia universal. Numa altura em que a cidade se renova, é incompreensível o estado de decadência do magnífico edifício do antigo Cinema Batalha. A reabilitação prevista para 2019 avança? Oxalá. Do outro lado da praça, o Teatro de São João está um brinco.

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quinta-feira, 19 de abril de 2018

MEXIA & SEBALD


Hoje na Sábado escrevo sobre Lá Fora, de Pedro Mexia (n. 1972). Ao contrário da percepção geral, a crónica não é um género muito praticado entre nós. As pessoas confundem crónica com panfleto. Crónica é outra coisa. E Mexia é dos raros cultores avisados. Avisado no sentido de discreto e sensato, qualidades que não beliscam a ironia, a emoção e, sem pose, a costela de erudito. Lá Fora, a colectânea mais recente, reúne textos publicados entre 2006 e 2017. O texto mais antigo, A sauna da democracia, é o retrato nítido do Parlamento. Se tivesse sido escrito pelo Eça a pretexto do estado da Nação sob Hintze Ribeiro, não seria diferente do estado da Nação sob Sócrates. Em flashes breves, Mexia sinaliza os pares da República. Por exemplo: «Nuno Melo lembrava o entusiasmo de um magala que vai às meninas. […] Bernardino Soares nunca foi novo.» O livro é um conjunto de evocações, viagens, afinidades electivas. Por serem momentos decisivos da vida do autor, o texto sobre o encerramento do Tribunal da Boa Hora estabelece uma ponte com o da deslocalização do ‘Diário de Notícias’ para fora do edifício de Pardal Monteiro. No primeiro, Mexia evoca o tempo em que cumpria com tédio o estágio de advocacia; no segundo, os primeiros anos inteiramente dedicados à escrita. Em registo oposto, Uma noite no Lux é um dos textos melhor conseguidos do livro. O mito da discoteca do Cais da Pedra não resiste à mordacidade do noctívago acidental: os «moços com pulôveres amarelos e dentes a mais», os projectores de luz «comprados nuns saldos da Stasi», etc. Sobre a Figueira da Foz, um texto comovido: «Aqui aprendi tudo e não aconteceu nada.» Mas também Maputo, aliás Lourenço Marques, reconstruída a partir de «autobiografias de terceiros». Porque foi a cidade colonial que Mexia tentou ‘encontrar’. A paleta de temas inclui assuntos tão diferentes como a polémica em torno da estátua de Catarina de Bragança, em Nova Iorque; a relação de Leonard Cohen com Marianne Ihlen; o terror metódico de Auschwitz; os judeus sefarditas de Amesterdão; o massacre de Utoya, na Noruega; e outros que o autor expõe com igual brilho. Quatro estrelas. Publicou a Tinta da China.

Escrevo ainda sobre a reedição de Pátria Apátrida, do alemão W.G. Sebald (1944-2001), colectânea de ensaios que dá a medida do sucesso do autor num país que só o descobriu depois de morto. Figura incontrornável do academismo alemão, ensaísta brilhante, Sebald notabilizou-se junto do grande público por intermédio das suas reflexões sobre decandentismo, identidade e memória. Os ensaios reunidos em Pátria Apátrida detêm-se com especial minúcia numa plêiade de autores de língua alemã, casos de, entre outros, Franz Kafka, Hermann Broch, Peter Handke, Charles Sealsfield, Leopold Kompert e Joseph Roth. Em consequência, a questão judaica é um tema em pauta: Para leste, para oeste. Aporias das histórias de gueto em língua alemã é, dos textos coligidos, um dos mais aliciantes. Sebald faz close reading das obras e autores estudados, com remissões de vária ordem (sociológica, política, literária), mas a clareza da escrita, sempre fluente, induz a leitura. Vejamos, sobre O Castelo, de Kafka: «O fado da família Barnabas é uma sociologia sinóptica do povo judeu. Na sua consequência mais extrema, a conclusão é que a minoria oprimida…» Um leitor menos apetrechado, mas não fútil, procurará inteirar-se do quadro geral. E só tem a ganhar. Quatro estrelas. Publicou a Quetzal.