sábado, 25 de junho de 2016

O REINO DE SUA MAJESTADE

Faço parte de uma geração que cresceu a admirar a Inglaterra. Sim, a Inglaterra, entidade nacional que subsumia a Inglaterra propriamente dita, mais o País de Gales, a Escócia e a Irlanda do Norte. Até muito tarde, nunca antes dos anos 1970, Reino Unido não era coisa que se ouvisse em conversa. A designação existe desde 1707? Pois existe. Mas era Inglaterra que se dizia. No limite, Grã-Bretanha. As pessoas não iam estudar ou passar férias no Reino Unido. Iam para Inglaterra. Isto para dizer que “a Inglaterra” era o símbolo de uma realidade com muitas moradas no céu.

Aprendemos isso no exercício diário da democracia, na literatura, na música, no teatro, na pintura, no cinema “inglês”, nas séries de televisão, no senso de humor, na moda, no futebol, nas excentricidades indígenas, na magia do countryside, nas revistas e jornais “ingleses”, no verde da relva, nas lutas pelos direitos das minorias, na resiliência aos bombardeamentos alemães, no patchwork dos 53 Estados-membros (um deles Moçambique) da Commonwealth e, last but not least, em Londres. É muita coisa junta para ficarmos indiferentes.

Aqui chegados, não podemos ignorar a sobranceria “inglesa” face à CEE e, mais tarde, à União Europeia, considerada sempre, e apenas, como área de comércio livre. O Reino Unido conservou a sua moeda, não aceitou integrar o Espaço Schengen, nem transpôs para o quadro jurídico interno uma série de normas comunitárias. Para já não falar da vergonha que representam as regras que impôs em matéria de refugiados (não confundir refugiados com emigrantes). Dito de outro modo, o reino de Sua Majestade queria o melhor de dois mundos. E nem por isso deixou de ser, como de facto acontece, a sociedade mais desigualitária da Europa.

Numa Europa cada vez mais desigual, os privilégios do Reino Unido eram um insulto à ideia de comunidade. Percebo a decepção de muita gente, mas o desfecho era fatal. Cameron não percebeu, o que dá a medida da tontice.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

ANDOR


Sem comentários. A imagem é do Expresso. Clique.

BREXIT, NOTAS SOLTAS

O Brexit venceu, mas 16 milhões de britânicos preferiam continuar na UE. Dá que pensar.

Apesar do mau tempo, com chuva torrencial em várias zonas do país, a participação no referendo ultrapassou a das eleições gerais do ano passado: 72,2% dos britânicos foram votar. A abstenção foi portanto de 27,8%. O Brexit venceu na Inglaterra (embora não em Londres) e no País de Gales. O Bremain venceu na Escócia e na Irlanda do Norte. Nicola Sturgeon, primeira-ministra da Escócia, vai propor um novo referendo à independência da Escócia. Entretanto, para acalmar os mercados, o Banco de Inglaterra vai injectar no mercado, ainda hoje, 250 mil milhões de Libras esterlinas.

Por volta das 8 da manhã, Cameron fez um proclamação dramática à porta do n.º 10 de Downing Street. Não está, disse ele, em condições de negociar com a Comissão Europeia a saída do país. Portanto, demite-se. Mas só em Outubro... É isso que irá dizer à rainha. Até lá, o partido que escolha um sucessor. Não estou a ver Boris Johnson a entrar no jogo. No Reino Unido, a mudança de PM não implica eleições prévias: Thatcher foi substituída por John Major num fim-de-semana (e só a avisaram na segunda-feira), e Blair por Gordon Brown mediante acordo entre as partes. Cameron, já se viu, acomodou-se aos hábitos continentais, mas Boris não lhe vai fazer a vida fácil.

Parece claro que o Labour de Jeremy Corbyn esteve do lado do Bremain para não ficar colado ao UKIP. Sem Farage, teria feito campanha pelo Brexit. O próprio Corbyn manteve uma eloquente parcimónia até ao assassinato de Jo Cox.

Sobre o futuro dos portugueses residentes no Reino Unido, suponho que não haverá sobressaltos. Salvo os que conseguiram obter nacionalidade britânica, e um punhado de colunáveis insuficientes para encherem o Artesian (o elegante bar de Regent Street), nós nunca fomos considerados cidadãos europeus. Os que lá estão vão continuar a ser imigrantes. Ponto.

ACONTECEU


Aconteceu. O resultado final é claro: 52% dos britânicos que votaram querem sair da UE. Cameron vai daqui a pouco dizer à rainha que abandona Downing Street. A imagem é do Guardian. Clique nela para ver melhor.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

JOHN BANVILLE


Hoje na Sábado escrevo sobre A Guitarra Azul, o romance mais recente do irlandês John Banville (n. 1945). Sejamos claros: Banville deveio clássico. Dezassete romances, um diário de viagem a Praga, bem como peças de teatro, fizeram dele uma referência incontornável. Excluo do inventário os dez livros da saga The Quirke, que assinou com o pseudónimo Benjamin Black. Contados pelos dedos de uma mão, a Europa não tem hoje, vivos, autores que possam medir-se com ele. O título vem de um poema de Wallace Stevens citado em epígrafe. Banville conta a história de um homem hipocondríaco, rechonchudo, outrora pintor. Nenhuma espécie de complacência para Oliver Otway Orme: «Uns quantos de vós, amantes da arte, inimigos da arte, talvez vos lembreis do nome, de tempos idos.» É o retrato de alguém à deriva nas contradições da meia-idade, ilusões perdidas, sarcasmo bem calibrado. Agora, Orme prefere que lhe chamem Autólico. E pindor em vez de pintor, porque pindor representa o «mestre da dor». Podia ter saído de um romance de Doitoievski ou Nabokov. Todos sabemos que Banville é exemplar na forma como fixa o perfil das personagens. Quem leu O Intocável, romance sobre Anthony Blunt (o professor e curador de arte da família real britânica que Thatcher denunciou no Parlamento como fazendo parte do quinteto de espiões de Cambridge), ou a trilogia dedicada a Copérnico, Kepler e Newton, sabe do que falo. Neste caso, há qualquer coisa de compósito, ou familiar, entre Orme e personagens de obras anteriores. Não é inocente que seja alguém obrigado a sobreviver ao “fracasso”. A intriga é velha como o mundo: amigo rouba mulher ao melhor amigo. Banville não inventa a roda. Trata de literatura e faz bom uso das ferramentas, sem retórica ou piruetas. A escrita enxuta é de regra, como ilustrada pela descrição de um piquenique: «pão, queijo, vinho e chuva». Os envios ao passado (e, em especial, à casa da infância) são um estratagema eficaz, do mesmo passo que as remissões de índole erudita dão espessura ao plot. É raro, mas acontece: um romance em que nenhuma palavra é supérflua. Cinco estrelas. Publicou a Porto Editora.

Escrevo ainda sobre Ensaios Escolhidos, de George Orwell (1903-1950). Para o grande público, Orwell é sinónimo de Mil novecentos e oitenta e quatro, o romance de 1949 que antecipou o formato Big Brother das sociedades actuais. Mas Orwell escreveu outro tipo de livros, como por exemplo Homenagem à Catalunha, sobre a sua experiência na Guerra Civil Espanhola. Entretanto, um conjunto de textos avulsos, grande parte deles escritos durante a Segunda Grande Guerra, foi coligido em Ensaios Escolhidos. O que fecha o volume, um texto não concluído sobre Evelyn Waugh, é o exemplo perfeito da sua heterodoxia, ao defender sem complexos o reaccionarismo do autor: «O que Waugh tenta fazer é usar o febril e inculto mundo moderno como contraponto para a sua conceção de um modo de vida bom e estável.» É largo o espectro de temas. A independência da Índia, a sua passagem pela polícia birmanesa, os ditirambos da crítica, as idiossincrasias de Dalí («um biltrezinho imundo»), a poesia de T. S. Eliot, o equívoco nazi de P. G. Wodehouse, consequências do nacionalismo, Tolstoi vs Shakespeare, o caso Ezra Pound e outros. Absolutamente essencial. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

BREXIT OU BREMAIN?


Hoje é um dia decisivo para o Reino Unido e para a nomenklatura da União Europeia. Não é, como alguns pretendem, um dia histórico para a Europa. A Europa dos 28 é uma ficção. Os povos da Europa dos 28 não foram tidos nem achados na escolha dos senhores Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, e Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu. Juncker e Tusk são figuras cerimoniais. A Europa dos 28 é governada, de facto, pelos senhores Schäuble, ministro alemão das Finanças; Dijsselbloem, ministro holandês das Finanças e presidente do Eurogrupo; e Draghi, presidente do Banco Central Europeu. Quem manda são eles: Schäuble, Dijsselbloem e Draghi. Merkel, a chanceler alemã, faz de porta-voz.

O Reino Unido viveu sempre com um pé dentro e outro fora da UE. Conservou a sua moeda, não integra o Espaço Schengen, nem transpôs para o quadro jurídico interno uma série de normas comunitárias. E vamos fazer de conta que não temos conhecimento das regras que impôs em matéria de refugiados (não confundir refugiados com emigrantes). Cameron, que andou anos a tripudiar o modus operandi da UE, esfalfa-se agora a polir as vantagens de pertencer à Europa dos 28. Seria uma anedota se não fosse trágico.

É evidente que a City não quer o Brexit porque, mesmo sem a moeda única, põe e dispõe. Decerto não por acaso, a Agência Bancária Europeia tem sede em Londres. É evidente que os milhares de funcionários britânicos que a UE tem destacados nas suas 139 delegações espalhadas pelo mundo não querem o Brexit porque perdem o emprego. É evidente que há interesses corporativos muito fortes e perdas a registar. Que percentagem da população britânica (64 milhões) seria afectada com o Brexit? 0,01%?

Tudo visto, a vitória do Brexit representaria um abanão em Bruxelas, com ondas de choque em Berlim e Paris. A ver vamos.

terça-feira, 21 de junho de 2016

DISCURSO DIRECTO, 39

José Vítor Malheiros, hoje no Público. Excertos, sublinhados meus:

«[...] Eu era então, como me considero ainda hoje, um europeu e um europeísta. [...] É por isso que, na próxima quinta-feira, quando conhecermos os resultados do referendo no Reino Unido, eu espero ardentemente que o resultado seja a vitória do “Brexit”. Não porque penso que o Reino Unido vá ficar melhor fora da UE. Não porque pense que a UE vai ficar melhor sem o Reino Unido. Mas apenas porque espero que a saída do Reino Unido seja o choque que irá provocar o abalo político, o exame de consciência e o toque a rebate democrático de que a União Europeia precisa para se reformar de forma radical e para se reconstruir, num formato e com regras diferentes, sob o signo da decência. E não penso que isso seja possível sem uma vitória do “Brexit”. [...] A questão é que a UE é uma organização antidemocrática, que não só é governada por dirigentes não eleitos e não removíveis, da Comissão Europeia ao Banco Central Europeu, como construiu ardilosamente uma camisa de forças jurídica, sob a forma de tratados irreformáveis de facto, através da qual manieta e subjuga os Estados-membros e lhes impõe políticas que estes não escolheram, mas não podem recusar. A questão é que a UE e as suas instituições se transformaram na tropa de choque do poder financeiro mundial e da ideologia neoliberal e, apesar das suas juras democráticas, impõem a agenda asfixiante da austeridade e proíbem de facto os países de prosseguir políticas nacionais progressistas mesmo quando elas são a escolha democrática dos seus povos. [...]»

EMPATE


O gráfico é do NatCen Social Research: What UK Thinks EU. Mostra a média de todas as sondagens até ao passado dia 18, inclusivé. Há um dado curioso nas entrevistas que li e ouvi: os defensores do Brexit apresentam factos concretos que dão que pensar; do outro lado, os defensores da permanência enrodilham-se numa língua de pau. Por vezes mesmo na quadratura do círculo. Um exemplo: Guy Verhofstadt, antigo primeiro-ministro belga e actual eurodeputado, afirma que os 28 Estados-membros estão espalhados por «doze Uniões Europeias». Doze. Então, diz ele, o Reino Unido deve continuar na UE para trabalhar em prol de uma única UE. (O senhor até escreveu um livro sobre o tema das 12-UE.) Argumento central: o Reino Unido é fundamental para a criação de um FBI europeu... porque a prioridade é defender as fronteiras externas. E outras razões esotéricas. Entretanto, Viktor Orban, primeiro-ministro húngaro, comprou uma página inteira de publicidade no Daily Mail apelando à permanência dos britânicos. Com defensores assim, o Remain não sai bem no retrato. Clique na imagem.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

O TRIUNFO DOS PALHAÇOS

Virginia Raggi, 37 anos, advogada, militante do Movimento Cinco Estrelas, foi eleita (com 67% dos votos) presidente da Câmara de Roma. Dirigido por um palhaço, o Movimento Cinco Estrelas, fundado para combater os partidos, define-se como anti-UE, populista e anti-establishment, apostando activamente no decrescimento da economia. Leu bem: no decrescimento. Ora como a economia italiana está, em 2016, no exacto ponto em que estava há vinte anos, não imagino as consequências do decrescimento. Enfim, é nesta gente que cada vez mais europeus se revêem.

DUAS VISÕES DO MUNDO


Em nome da “segurança”, o  Governo turco proibiu a marcha do orgulho gay agendada para ontem em Istambul. Contudo, em Telavive, onde o item “segurança” não pode ser descartado, a marcha do orgulho gay realizada no passado dia 3 (realiza-se todos os anos desde 1978), juntou nada menos que 200.000 pessoas. Isso: duzentas mil. A imagem é de Telavive. Clique para ver melhor.

domingo, 19 de junho de 2016

GRAU ZERO


Comentários para quê? Clique na imagem.

O SILÊNCIO DOS MEDIA


Por razões que não vêm ao caso, não participei ontem na marcha do orgulho LGBT, mas recebi informação de várias fontes. Hoje, o silêncio da imprensa é ensurdecedor. Isto apesar da marcha (realizada pela 17.ª vez) ter contado com a maior adesão de sempre, e nela terem participado membros do Governo, autarcas, os embaixadores da Áustria, Dinamarca, Estados Unidos e Israel, políticos e personalidades públicas de vários quadrantes, etc. Houve discursos para todas as sensibilidades, incluindo aquela que atribui aos Estados Unidos a culpa de tudo, ou seja, um insulto directo às vítimas de Orlando, justamente lembradas numa faixa com os seus 49 retratos que foi carregada ao longo do percurso. O descaso da imprensa dita de referência estende-se à manif em defesa da escola pública, realizada quase em simultâneo. Com jornais assim, não vamos lá.

As fotos foram roubadas ao Pedro Faro (a imagem de rua) e ao site Dezanove.pt (a faixa com os retratos). Clique nas imagens para ver melhor.