Hoje na Sábado escrevo sobre Estamos todos completamente fora de nós, de Karen Joy Fowler (n. 1950), romance que ganhou no ano passado o prémio PEN/Faulkner na categoria de ficção. Já se sabia que Fowler defende os direitos dos animais, mas a autora desconcertou meio mundo ao fazer de um chimpanzé-fêmea a “irmã” de Rosemary, a narradora desta história sobre uma família pouco convencional: «Passei os primeiros dezoito anos de vida identificada por este único facto: ter sido educada com um chimpanzé.» Dito de outro modo, Fern não era um animal de estimação, era membro da família, «a irmãnzinha de Lowell, a sua sombra, a sua fiel companheira.» Lowell é o irmão humano de Rosemary. O mesmo se diga de Mary, outro chimpanzé. Estamos no limite do racional, mas a narrativa nunca derrapa, porque Fowler tem uma escrita segura, culta, pontuada de compaixão, humor e extrema racionalidade. Não é por acaso que a datação dos capítulos traz indexados alguns factos que ajudam a contextualizar o ar do tempo (entre outros exemplos, a crise dos reféns na Embaixada dos Estados Unidos em Teerão). Digamos que uma espécie de magia faz de cimento do plot. E tudo gira em torno de Fern, cuja lembrança percorre os anos de crescimento de Rosemary. O punctum é a relação dos humanos com os animais, sendo Fern uma metáfora das ambiguidades decorrentes. Quando Fern desaparece, Rosemary (então com cinco anos) passa a viver atormentada, longe de supor, como descobrirá mais tarde, que a “irmã” não fora levada para uma quinta, mas sim para um laboratório universitário onde o doutor Uljevik a meteu numa jaula com outros chimpanzés (ela que nunca convivera com os seus iguais), pois «tinha de aprender qual era o seu lugar, tinha de perceber o que era.» São ínvios os caminhos da psicologia comportamental. Na realidade, o livro disseca a questão sempre escorregadia do direito à identidade. Rosemary é adulta no momento em que a história é narrada. Lowell foi preso pelo FBI por se opor às experências com orcas. Fern persiste uma ferida aberta. Convenhamos que Tolstoi fez a síntese perfeita: «cada família infeliz é infeliz à sua maneira.» Tudo isto roçaria o nonsense não se desse o caso de Fowler ser uma autora de recursos sólidos. Um dos expedientes assenta na citação de filmes: eles explicam os estados de apatia, euforia ou disforia. No capítulo Sete dá-se o reencontro dilacerante de Fern com Rosemary. Publicou a Jacarandá. Cinco estrelas.
Escrevo ainda sobre O Estrangeiro, de Albert Camus (1913-1960), autor duplamente estrangeiro à intelligentsia francesa, facto que não o impediu de construir uma das obras mais marcantes do século XX. Foi agora reeditada a novela que assinalou o reconhecimento que teve o seu corolário em 1957, ano em que recebeu o Prémio Nobel. Este homem nascido na Argélia, que só conheceu o pai em fotografia, teve contra si o estigma da identidade pied noir, da exclusão social, da tuberculose que o impediu de ser futebolista e (mais tarde) de passar na agregação para professor de filosofia, do combate sem tréguas que o Partido Comunista francês lhe moveu a partir de 1951, pagou caro o ónus da coerência ideológica: a sua morte aos 46 anos teria sido consequência de um atentado encomendado ao KGB por Dmitri Shepilov. O Estrangeiro é Meursault, narrador do absurdo: um homem que o tribunal condena à guilhotina não por haver assassinado um árabe, mas pela «insensibilidade de que deu provas após a morte da mãe num asilo: «Que me importava se, acusado de um crime, era executado por não ter chorado no enterro da minha mãe?» A história do checo morto à martelada pela mãe e pela irmã (Meursault reflecte sobre isso na solidão da cela) serve de parábola do sem sentido da existência. Edição Livros do Brasil. Quatro estrelas.