Hoje na Sábado, Literatura e Viagens
Houve um tempo em que a literatura nos impelia a viajar, descobrindo povos e países. Isso mudou. Os que não lêem livros têm agora o recurso da Internet. Presumo que sejam poucos os que hoje seguem as pegadas de Jan Morris ou Bruce Chatwin.
A minha geração atravessou a adolescência e a entrada na idade adulta sem plataformas digitais. Queríamos descobrir as cidades dos “nossos” autores. Lembro-me de, por volta de 1966, ter lido A Bastarda de Violette Leduc. Como não querer conhecer os cafés onde se acotovelavam as lendas vivas que eram então Simone de Beauvoir, Sartre e Genet, os caveaux onde Juliette Gréco reinava como sacerdotisa de todos os existencialistas? Mas a vida dá muitas voltas e, quando a oportunidade chegou, já a literatura francesa era um imenso bocejo, com raros intervalos de lucidez — À l’Ami Qui Ne m’a Pas Sauvé La Vie de Hervé Guibert foi um deles — que erguiam uma barragem, não contra o Pacífico (como em Duras), mas contra o desejo.
Muito antes calhou a vez de Londres. Era preciso conhecer a cidade onde Virginia Woolf e os outros bloomsberries inauguraram em 1910 o mundo moderno, entendido como, notou Quentin Bell, «uma entidade ética, social e estética.» Mais: era preciso fazer o percurso que Clarissa Dalloway fez na manhã em que foi comprar flores. A Festa de Mrs Dalloway é o conto de 1922 que mais tarde deu origem ao romance Mrs Dalloway, lido por todos nós antes do texto percursor. Até que um dia dei comigo no n.º 31 de Gordon Square, morada onde o economista John Maynard Keynes e o pintor Duncan Grant viveram a sua relação amorosa (nessa casa está hoje instalada a Mozambique High Commission). Virginia, portanto, mais T.S. Eliot e os que vieram a seguir, de Graham Greene, Doris Lessing e John Le Carré até Julian Barnes, Ian McEwan e Zadie Smith. Mas quando pela primeira vez ali cheguei, o Bloomsbury era um bairro melancólico e a swinging London uma reminiscência arqueológica, porque Callaghan era então o inquilino de Downing Street, e até no Ivy, o restaurante do West End preferido pelos intelectuais de esquerda, se dizia mal dele. A mítica dos sixties, com o célebre Annus Mirabilis de Larkin — «Sexual intercourse began / In nineteen sixty-three…» —, os Beatles, Mary Quant, Carnaby Street, Twiggy (epítome da super-modelo anoréxica), o glamoroso escândalo Profumo, faziam parte da era que Antonioni fixou em Blow-Up.
O Buda dos Subúrbios, de Hanif Kureishi, regista essa mudança. Thatcher deu cabo do resto, mas isso é outro campeonato.
E por vezes um livro basta. A Virgem dos Sicários de Fernando Vallejo fez mais por Medellín que o famoso cartel de droga de Pablo Escobar. A Catedral Metropolitana da cidade, onde os sicários (matadores a soldo) iam pedir a benção da Virgem antes de consumarem as execuções contratadas, tornou-se, quem diria?, lugar de culto literário… São ínvios os caminhos que ligam a literatura ao desejo de viajar.
O Rio de Janeiro foi um caso especial. Como não visitar a cidade à boleia de Machado de Assis? Dois livros chegam: Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro «amargo e áspero», e Dom Casmurro, apesar de tudo menos dickensiano. Percorrer a Rua do Ouvidor, tomar chá na Confeitaria Colombo, conhecer Santa Teresa — cenário de outras obras de Machado e, cem anos mais tarde, zona demarcada dos soixante-huitard que sobreviveram ao novo milénio —, calcorrear o Jardim Botânico, descobrir que a cidade rivaliza com Paris em matéria de art déco, ou seja, tentar perceber o Rio vazado em obras de Lima Barreto, João do Rio, Nelson Rodrigues, Carlos Heitor Cony, Ruy Castro e outros. Por falar em Castro, o Rio que melhor conheci cabe inteiro nos seus livros, sobretudo o bairro de Ipanema, feudo da imigração culta (sobretudo alemães, polacos, franceses e italianos) dos anos 1930 e, talvez por isso, sublinha o autor de Carnaval no Fogo, «berço ou palco de várias revoluções no comportamento, na moda, nas artes plásticas, no cinema, na música popular, na imprensa…». Dito de outro modo, o cosmopolitismo no seu esplendor.
Para Roma também somos empurrados pela literatura. Quem leu Declínio e Queda do Império Romano de Edward Gibbon ou, em alternativa, I Claudius de Robert Graves, não perde a cidade de vista. Mas também Pasolini, Moravia e Elsa Morante, referências incontornáveis. Os primeiros romances do cineasta, Ragazzi di vita, radiografia crua do lumpemproletariado, e Vida Violenta, espécie de sequela do anterior, acordam em nós sentimentos díspares. Temos de ir ver como é. Contudo, Roma permanece um caso singular, sendo porventura a menos moderna das capitais europeias. A primeira grande surpresa decorre das afinidades com Lisboa: cheio de tesouros artísticos incomparáveis, o centro histórico de Roma é uma espécie de Bairro Alto a multiplicar por quatro. E o Trastevere, bairro boémio por excelência, reproduz fielmente o que livros e filmes ilustram: engarrafamentos de trânsito madrugada dentro, com centenas de vespas em alta velocidade, beldades de todos os sexos a beber, dançar e flirtar na rua (como na Piazza Trilussa, epicentro do que sobrou da dolce vita), feiras de bijuteria a céu aberto defronte de igrejas medievais, versão low cost e contemporânea do Satyricon de Petrónio.
Veneza é um caso parecido. Durante séculos, toda a gente escreveu sobre a cidade. Dois exemplos: as Dramatic Lyrics de Robert Browning, sequência de pregnante eloquência, ou Marca de Água de Joseph Brodsky. Foi aliás por causa do russo que lá fui. Mas a bibliografia da cidade é interminável: desde logo Ruskin, com St Mark’s Rest: The History of Venice, e depois Goethe, Thomas Mann, Italo Calvino e dezenas de outros. A Riva Degli Schiavoni, onde Henry James viveu e escreveu Retrato duma Senhora, não se adequa à nossa fantasia, mas não nos podemos esquecer que em 1880 o mundo era outro.
Berlim é um caso sério, sobretudo para quem gosta de poesia inglesa. Não há nenhum mistério. Christopher Isherwood escreveu Adeus a Berlim após ali ter vivido com Auden (seu amante) e os poetas Stephen Spender, Louis Mac Neice e Cecil Day-Lewis, mais o fotógrafo Herbert List. O livro de Isherwood é sempre citado, até por causa de Cabaret, o filme de Bob Fosse, mas o relato mais fiel desses anos loucos do estertor da República de Weimar foi escrito por Spender, num romance autobiográfico, pouco conhecido, chamado O Templo. A seguir veio o Reich e a Segunda Guerra Mundial, catástrofe que gerou toda uma literatura, mas foram os thirties poets ingleses que colocaram Berlim no meu ponto de mira.
Falar de literatura e viagens e esquecer Nova Iorque seria uma contradição nos termos. Uma pessoa lê Breakfast at Tiffany’s de Truman Capote, ou O Grande Gatsby de Scott Fitzgerald, e vê-se obrigada a conhecer a cidade. Os mais novos, para quem Capote ou Fitzgerald possam ser referências remotas, podem optar por outros marcos geracionais, como o glittering As Mil Luzes de Nova Iorque de Jay McInerney, apogeu do Brat Pack literário, ou, em registo étnico, Open City de Teju Cole. A lista nunca termina, mas os livros de Mary McCarthy, John Cheever e Dorothy Parker estão entre os que fizeram de Nova Iorque a cidade prometida para sucessivas gerações de leitores. Quem, gostando de literatura, fica indiferente à memória da Round Table, com quartel-general instalado no bar do Algonquin Hotel? Fundada por Dorothy Parker e Alexander Woollcott, foi na Round Table (o mais influente círculo de críticos de Nova Iorque entre 1919 e 1929, a quem os detractores se referiam como the vicious circle…) que nasceu a revista New Yorker. Recuando no tempo, convém não esquecer Walt Whitman, que em 1855 publicou na cidade a primeira edição de Leaves of Grass, cujo primeiro canto, nesse ano ainda sem título, virá mais tarde a ser o emblemático Song of Myself. Whitman trabalhou em vários jornais de Manhattan, escrevendo crítica de ópera, teatro e baseball, crónicas do quotidiano, artigos sobre a questão esclavagista, guias de viagem, etc. Se tudo isto não são argumentos de viagem…
Do outro lado do mundo, Viena continua a fazer parte do imaginário dos viajantes cultos. Muitos ainda lá vão por causa de Freud, embora grande parte deles saiba que o famoso divã está em Londres, no museu de Hampstead dedicado ao pai da psicanálise. Verdade que, na primeira metade do século XX, os filósofos, cientistas, pintores e escritores que constituiram o Círculo de Viena fizeram da capital austríaca um dos epicentros da política e da cultura da Europa. Os leitores de Stefan Zweig são muitos e, após ler O Mundo de Ontem, a sua autobiografia, quase todos querem ir conferir. Joseph Roth, Thomas Bernhard, Arthur Schnitzler e Elfriede Jelinek têm a sua quota, mas Zweig chega e sobra para nos transportar à cidade que ficou manchada pelo Anschluss nazi. Os apreciadores de thrillers de espionagem guiam-se por Graham Greene, que ali esteve destacado como agente secreto do MI6 britânico.
Faltam cidades? Faltam com certeza. Mas o poço sem fundo da literatura universal ajuda-nos a encontrar os recessos onde escondemos os nossos fantasmas privados.
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