Hoje na Sábado.
Para surpresa de muitos, o Nobel da Literatura 2020 foi atribuído a uma poeta praticamente desconhecida em Portugal. Falo da norte-americana Louise Glück (n. 1943), oriunda de uma família de judeus russos e húngaros. Traduzido por Ana Luísa Amaral, A Íris Selvagem venceu o Pulitzer de Poesia em 1993. Conjunto de 54 poemas em torno de um jardim, alegoria de Deus, cerca de vinte têm o mesmo título: Matinas e Vésperas. Logo a abrir, o poema titular dá o mote: «É muito duro sobreviver assim, / a consciência / sepultada na terra escura.» Onde lemos rosas, violetas, íris, etc., estão pessoas. Elíptica, nimbada de certa tonalidade bíblica, a poesia de Glück demarca-se ostensivamente do que convencionou chamar-se “poesia do real”. Se começar por ler “Final de Inverno”, “Vento em Fuga” ou “A Porta”, vai querer ler tudo, incluindo os outros três livros da autora já disponíveis. Agora é só aguardar por The Triumph of Achilles, uma das suas obras mais notáveis. Publicou a Relógio d'Água.
Traduzido directamente do russo por Larissa Shotropa, foi publicado Garganta de Aço, primeiro volume dos contos completos de Mikhail Bulgakov (1891-1940). Seriados cronologicamente, incluem “Apontamentos de um jovem médico”, ciclo sobre o início da sua actividade clínica em Smolensk. Em jeito de autobiografia ficcionada, Bulgakov não poupa o leitor aos detalhes de uma traqueotomia. Mais tarde, Bulgakov tornou-se escritor a tempo inteiro, mas acabou por cair em desgraça junto de Estaline. Só trinta anos após a sua morte as obras começaram a ser divulgadas. Por exemplo, a primeira edição não censurada de O Mestre e Margarita é de 1973. Um clássico entre clássicos. Publicou a E-Primatur.
O poeta e ensaísta espanhol Antonio Gamoneda (n. 1931) publicou Um Armário Cheio de Sombra, memórias da infância e adolescência de um rapaz pobre das Astúrias, nos anos de sombra da Guerra Civil de Espanha. O relato seco da miséria extrema, dos abusos do colégio de frades, da repressão franquista, da morte do pai (a seu pedido, após um derrame cerebral, a mulher provocou-lhe uma overdose de morfina), do primeiro emprego, antecipando a idade adulta para os catorze anos, fazem deste livro um testemunho admirável. Publicou a Minotauro.
Quem gosta de ficção histórica ambientada na Idade das Trevas e, em especial, dos livros de Ken Follett (n. 1949), vai com certeza apreciar Kingsbridge: O Amanhecer de Uma Nova Era, prequela de Os Pilares da Terra. O novo livro recua até ao ano 997dC, durante os ataques a Inglaterra vindos do Leste (os viquingues) e do Oeste (os galeses). A estrutura romanesca não difere dos anteriores, embora não esteja focado numa grande construção. Desta vez, sobrelevam os efeitos colaterais da política. Eventuais especulações sobre dados históricos não beliscam o prazer da leitura. Afinal, trata-se de um romance de aventuras bem esgalhado. Publicou a Presença.
Com Mulheres da Minha Alma, a chilena Isabel Allende (n. 1942) acrescentou um título à extensa bibliografia feminista. Rebelde contra a autoridade masculina, fala das mulheres da sua alma: sua mãe, sua filha Paula e a amiga e agente Carmen Balcells. Mas também de Olga Murray (a salvadora de meninas nepalesas), das escritoras de eleição e de bruxas. Numa linguagem alheada de jargão académico, escalpeliza a realidade chilena, mas também a de outras latitudes, como a norte-americana. Uma boa surpresa. Publicou a Porto Editora.
Romancista, dramaturgo e ensaísta, é sempre gratificante voltar a Don DeLillo (n. 1936), o derradeiro guru da literatura norte-americana. Depois de ter escrito sobre temas tão diversos como o advento da Era digital, o assassinato de Kennedy, fraude fiscal, linguística, dissuasão nuclear, artes performativas, adultério, terrorismo, Wall Street, desporto, televisão, o 11 de Setembro (o melhor romance sobre a tragédia de 2001 continua a ser O Homem em Queda), velhice, etc., chegou a vez de escrever sobre o futuro próximo. Publicado em plena pandemia, O Silêncio, romance minimal que podia ser uma peça de teatro, centra-se no Super Bowl de 2022. Em Nova Iorque, defronte de um televisor, ansiosas pela final do campeonato, três pessoas aguardam a chegada de um casal amigo regressado de Paris (ignoram que o avião de Jim e Tessa tenha tido que fazer uma violenta aterragem de emergência). Até que tudo pára: televisores, laptops, relógios, telefones. Com o colapso geral da energia, a cidade está mergulhada na escuridão. Apocalipse da Internet provocado pela China? Ciberataque de origem russa? Início da Terceira Guerra Mundial? Invasão extraterrestre? Nenhum dos cinco sabe o que pensar. Deveras inquietante. Publicou a Relógio d'Água.