sábado, 29 de outubro de 2016

ANDA TUDO DOIDO?

Num curto espaço de dias, dois altos funcionários tiveram de demitir-se por terem feito declarações falsas sobre as suas habilitações académicas. Na segunda-feira, dia 25, foi a vez de Rui Roque, adjunto do primeiro-ministro para os Assuntos Regionais. Roque frequentou o curso de Engenharia Electrotécnica e de Computadores, sem o ter concluído. O cargo que exercia não exige licenciatura, o que acentua o ridículo da história. Ontem foi Nuno Félix, chefe de gabinete do secretário de Estado da Juventude e Desporto. Félix era apresentado como detentor de duas licenciaturas: Ciências da Comunicação (Nova) e Direito (Autónoma). As duas universidades desmentiram.

Tudo isto é deprimente. Vivemos no país dos doutores da mula ruça. Talvez fosse bom contar um episódio à rapaziada: o maior empresário português do século XX, António Champalimaud, que não tinha estudos superiores, demitiu um funcionário que um dia o tratou por «senhor doutor». Agora é ao contrário. Gente sem licenciatura, mas que não precisa, porque tem Obra e nome feitos, aceita ser tratada por doutor na televisão e nos jornais.

AD AETERNUM


Esqueçam Março de 2017, a mais recente prorrogação. Comentários para quê?
Imagem do Diário de Notícias. Clique.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O RECADO DE COSTA

Schäuble, o ministro alemão das Finanças, intrometeu-se mais uma vez na política portuguesa. E o primeiro-ministro português não perdeu tempo. Disse António Costa:

«Dou sobretudo atenção aos alemães que conhecem Portugal e, por isso, sabem do que falam. Por exemplo, dou muita importância à Volkswagen, que decidiu manter a sua fábrica em Portugal e lançou um novo modelo a partir de Palmela. Mas também dou muita atenção à Bosch, que fez este ano um grande investimento em investigação com a Universidade do Minho, e dou ainda muita importância à Continental, outra grande empresa alemã que lançou uma nova unidade fabril para passar a produzir em Portugal uma nova gama de pneus destinada a máquinas agrícolas. Esses são os alemães a quem eu dou atenção: os alemães que conhecem Portugal, investem, produzem e criam riqueza no nosso país. Quanto aos outros, naturalmente a opinião é livre e cada um segue o seu critério. Eu só costumo falar sobre aquilo que sei e nunca falo sobre outros países sobre os quais não sei nada. O preconceito é muito pouco inspirador para se falar com tino

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

IAN McEWAN


Hoje na Sábado escrevo sobre Numa Casca de Noz, do inglês Ian McEwan (n. 1948), um autor que não pára de surpreender-nos. O romance mais recente coloca o narrador num feto: «E para aqui estou eu, de pernas para o ar dentro de uma mulher. Com os braços pacientemente cruzados, à espera, à espera e a perguntar-me dentro de quem estou, para que estou aqui.» É assim que o livro começa. É provável que os leitores de Expiação (2001), Na Praia de Chesil (2007), Mel (2012) ou A Balada de Adam Henry (2014), quatro dos seus livros que fixaram a bitola do virtuosismo, fiquem desconcertados com um romance que, seguindo a tipologia narrativa de um thriller, ultrapassa o protocolo do género. Com recurso ao imaginário hamletiano, McEwan faz o que antes dele outros fizeram. Iris Murdoch e David Foster Wallace são dois exemplos. É lendário o ódio que opôs o príncipe da Dinamarca ao tio Claudius. Numa Casca de Noz anda lá perto. Dois amantes, Trudy e Claude, combinam matar John, pai da criança que vai nascer. John, poeta e editor marginal, irmão de Claude, não perdeu a esperança de voltar a viver com Trudy. Mas é com o cunhado que Trudy quer estar, sobretudo na cama. Ninguém melhor que o feto-narrador para o comprovar: «Nem toda a gente sabe o que é ter o pénis do rival do nosso pai a centímetros do nariz.» O enfoque podia ter privilegiado a trama assassina, mas McEwan optou por um solilóquio em grande angular. Desviando-se da intriga central, o feto-narrador reflecte sobre vários temas, tais como o carácter dos progenitores, as sequelas do terrorismo em Londres («Não entro no metro desde o 7 de Julho»), geopolítica internacional, os «vastos movimentos de populações» e até as peculiaridades da monarquia britânica, sem esquecer as trivialidades do quotidiano. Num autor menos apetrechado, a descrição de certas situações seria penosa. Convenhamos que pôr um feto a discretear sobre a exiguidade do «sítio onde [se] encontra» não acontece todos os dias. Citações de Shakespeare, Draiton, Keats, Eliot, Owen e outros, dão consistência ao recorte psicológico das personagens, bem como ao inesperado desfecho. Quatro estrelas. Publicou a Gradiva.

Escrevo ainda sobre Memórias de um Escravo, de Laila Lalami (n. 1968), escritora marroquina de expressão inglesa, radicada há mais de vinte anos nos Estados Unidos, país onde começou a escrever e publicar. A história, centrada numa expedição ao denominado Novo Mundo (América) durante a primeira metade do século XVI, é narrada por Mustafa ibn Muhammad, o escravo negro-árabe de Azamor a quem o capitão da armada castelhana tratava por Estebanico. Baseado em factos reais, o romance de Laila Lalami foi construído a partir de Naufragios y comentarios, o diário de viagem de Álvar Núñez Cabeza de Vaca (1490-1557) considerado o primeiro relato histórico do que é actualmente a Flórida. Laila ficciona as personagens, excepto Estebanico, intercalando os vários tempos da narrativa. A intriga apoia-se numa série de incidentes picarescos, apontamentos etnográficos, violência, equívocos e um saldo de centenas de mortes. Estebanico é um dos quatro sobreviventes do desastre. Em rodapé, o tradutor Paulo Rêgo ajuda o leitor a situar as datas da Hégira no calendário cristão. Exemplo: «o ano 934 da Hégira […] corresponde a 1527Três estrelas. Publicou o Clube do Autor.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

PAUL BEATTY


Com The Sellout, uma saga distópica, Paul Beatty, 54 anos, tornou-se o primeiro americano a ganhar o Man Booker Prize. Entre 1969 e 2013 o prémio foi atribuído exclusivamente a autores do Reino Unido e dos países da Commonwealth. Desde então é irrelevante a origem do autor, desde que o livro esteja publicado em língua inglesa no Reino Unido. Beatty, que começou a publicar em 1991, é autor de quatro romances e dois volumes de poesia. Lembrar que The Sellout já havia sido premiado com o National Book Critics Circle Award. Quanto sei, nenhum livro seu está traduzido em Portugal.

Na imagem (BBC), Beatty com a Duquesa da Cornualha.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

CONDIÇÃO DE RECURSOS

Anda tudo em polvorosa com a exigência de condição de recursos para as pensões mínimas. Para começo de conversa convém esclarecer que a denominada pensão mínima tem quatro escalões: vai de 275,89 euros para quem tenha descontado durante um período inferior a quinze anos, até 380,56 euros para quem o tenha feito durante pelo menos trinta anos. São valores de 2016.

Isto dito, três histórias entre muitas possíveis.

J., 72 anos, operário, tendo trabalhado nos Estados Unidos durante 36 anos (1976-2012), é detentor de uma pensão americana de 836 dólares, o equivalente a 768 euros. Não obstante, requereu e aufere o escalão mais baixo da pensão mínima da Segurança Social por ter trabalhado e descontado em Portugal entre 1967-75.

T., 92 anos, doméstica, vivendo em união de facto (desde 1971) com um médico do SNS detentor de pensão de aposentação de 2.400 euros brutos, viu indeferido em 2011 o pedido de pensão de velhice. Argumento: Não tem necessidade.

M., 67 anos, freelance na área da fotografia, proprietário de viatura própria e habitação avaliada em meio milhão de euros, nunca tendo efectuado descontos em Portugal, aufere o escalão mais baixo da pensão mínima da Segurança Social. Verdade que ter carro e casa não põe comida na boca, não paga a conta da farmácia, nem a electricidade nem a água, etc. Mas não custa demonstrar.

É evidente que este universo tem de ser disciplinado. Não se trata de mexer no que está atribuído. Trata-se de escrutinar o que aí vem.