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Hoje na Sábado escrevo sobre Numa Casca de Noz, do inglês Ian McEwan (n. 1948), um autor que não pára de surpreender-nos. O romance mais recente coloca o narrador num feto: «E para aqui estou eu, de pernas para o ar dentro de uma mulher. Com os braços pacientemente cruzados, à espera, à espera e a perguntar-me dentro de quem estou, para que estou aqui.» É assim que o livro começa. É provável que os leitores de Expiação (2001), Na Praia de Chesil (2007), Mel (2012) ou A Balada de Adam Henry (2014), quatro dos seus livros que fixaram a bitola do virtuosismo, fiquem desconcertados com um romance que, seguindo a tipologia narrativa de um thriller, ultrapassa o protocolo do género. Com recurso ao imaginário hamletiano, McEwan faz o que antes dele outros fizeram. Iris Murdoch e David Foster Wallace são dois exemplos. É lendário o ódio que opôs o príncipe da Dinamarca ao tio Claudius. Numa Casca de Noz anda lá perto. Dois amantes, Trudy e Claude, combinam matar John, pai da criança que vai nascer. John, poeta e editor marginal, irmão de Claude, não perdeu a esperança de voltar a viver com Trudy. Mas é com o cunhado que Trudy quer estar, sobretudo na cama. Ninguém melhor que o feto-narrador para o comprovar: «Nem toda a gente sabe o que é ter o pénis do rival do nosso pai a centímetros do nariz.» O enfoque podia ter privilegiado a trama assassina, mas McEwan optou por um solilóquio em grande angular. Desviando-se da intriga central, o feto-narrador reflecte sobre vários temas, tais como o carácter dos progenitores, as sequelas do terrorismo em Londres («Não entro no metro desde o 7 de Julho»), geopolítica internacional, os «vastos movimentos de populações» e até as peculiaridades da monarquia britânica, sem esquecer as trivialidades do quotidiano. Num autor menos apetrechado, a descrição de certas situações seria penosa. Convenhamos que pôr um feto a discretear sobre a exiguidade do «sítio onde [se] encontra» não acontece todos os dias. Citações de Shakespeare, Draiton, Keats, Eliot, Owen e outros, dão consistência ao recorte psicológico das personagens, bem como ao inesperado desfecho. Quatro estrelas. Publicou a Gradiva.
Escrevo ainda sobre Memórias de um Escravo, de Laila Lalami (n. 1968), escritora marroquina de expressão inglesa, radicada há mais de vinte anos nos Estados Unidos, país onde começou a escrever e publicar. A história, centrada numa expedição ao denominado Novo Mundo (América) durante a primeira metade do século XVI, é narrada por Mustafa ibn Muhammad, o escravo negro-árabe de Azamor a quem o capitão da armada castelhana tratava por Estebanico. Baseado em factos reais, o romance de Laila Lalami foi construído a partir de Naufragios y comentarios, o diário de viagem de Álvar Núñez Cabeza de Vaca (1490-1557) considerado o primeiro relato histórico do que é actualmente a Flórida. Laila ficciona as personagens, excepto Estebanico, intercalando os vários tempos da narrativa. A intriga apoia-se numa série de incidentes picarescos, apontamentos etnográficos, violência, equívocos e um saldo de centenas de mortes. Estebanico é um dos quatro sobreviventes do desastre. Em rodapé, o tradutor Paulo Rêgo ajuda o leitor a situar as datas da Hégira no calendário cristão. Exemplo: «o ano 934 da Hégira […] corresponde a 1527.» Três estrelas. Publicou o Clube do Autor.