Hoje na Sábado escrevo sobre a reedição de Doida Não e Não!, de Manuela Gonzaga (n. 1951), livro que tem por objecto um dos maiores escândalos da sociedade portuguesa das décadas de 1910 e 1920. O adultério de Maria Adelaide Coelho da Cunha fez manchetes nos jornais, deu origem a um belo filme de Monique Rutler e, com enfoques diferentes, a vários outros livros. Tornado público em Novembro de 1918, o adultério de Maria Adelaide foi uma cause célèbre que dividiu o país ao meio e expôs com clareza a subalternidade das mulheres. E esse é o aspecto central. Filha e herdeira de Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, Maria Adelaide era uma figura estimada da melhor sociedade de Lisboa, anfitriã de recepções lendárias, como as realizadas na Primavera de 1915 a pretexto das suas Bodas de Prata. Culta, emancipada, mãe de um único filho, cometeu a ousadia de abandonar o palácio de São Vicente para juntar-se a Manuel Claro, o motorista. Tinha então 48 anos, e o amante 26. Maria Adelaide adoptou o nome de Maria Romana Claro e refugiou-se com o amante em Santa Comba Dão, onde o marido e o filho os descobriram. Manuel Claro tinha sido despedido no ano anterior. A natureza das relações entre a mulher e o motorista não terão passado despercebidas a Alfredo da Cunha, o influente director do Diário de Notícias que julgava poder acabar com o affaire. Mas o afastamento não impediu encontros em quartos alugados. Uma vez descobertos, Manuel Claro foi preso e enviado para a Cadeia da Relação do Porto, onde cumpriu pena durante quatro anos. Maria Adelaide viu-se internada à força no Hospital Conde de Ferreira, do Porto. Começou assim um episódio sinistro da medicina portuguesa, de que foram cúmplices ‘sumidades’ como Magalhães Lemos e a trindade da psiquiatria nacional: Egas Moniz, Júlio de Matos e Sobral Cid. Maria Adelaide foi interditada (assim permaneceu até 1944), como era de uso fazer às mulheres. Maria Adelaide e Manuel Claro viveram juntos, no Porto, até morrer. Manuela Gonzaga documenta bem os factos, mas a narrativa teria ganho com uma prosa mais passional. Três estrelas. Publicou a Bertrand.
Escrevo ainda sobre Homem-Tigre, o segundo romance do indonésio Eka Kurniawan. Entre nós, a edição de obras estrangeiras anda a reboque dos prémios mais mediatizados, o que explica a tradução deste livro, cuja edição em língua inglesa colocou Kurniawan entre os nomeados do Man Booker International Prize. Eka Kurniawan nasceu em 28 de Novembro de 1975, o dia em que Timor Leste declarou a independência, e ele gosta de sublinhar o facto, por estar associado à luta contra a opressão. Oriundo de uma família pobre de Java Ocidental, viria a ser activista contra a ditadura de Suharto. Considerado actualmente o escritor mais relevante da Indonésia, Kurniawan subsume a tradição oral dos camponeses, e simbologia correlata, na realidade urbana contemporânea, sem perder de vista o sobrenatural. Tudo isso conflui, em Homem-Tigre, para um inesperado thriller. Animal mítico, o tigre surge travestido de fêmea, encarnando em Margio, o jovem que morde a jugular de Anwar Sadat (não confundir com o presidente egípcio). De forma nem sempre linear, o romance faz o relato retrospectivo das causas do crime. O volume inclui uma excelente introdução de Benedict Anderson, a qual, presumo, fará parte da edição americana. Quatro estrelas. Publicou a Elsinore.