Hoje na Sábado escrevo sobre O Impostor, do espanhol Javier Cercas (n. 1962), um dos nomes centrais da literatura em castelhano. Traduzido em dezenas de países, várias vezes premiado, colunista de El País, publicou no ano passado um livro inspirado na vida de Enric Marco, o presidente da Amical de Mauthausen (a associação de sobreviventes com sede em Barcelona), mas também secretário-geral da Confederação Nacional do Trabalho. O título diz tudo: O Impostor. Até ao momento de ser desmascarado, Enric, o anarco-sindicalista, construiu a biografia falsa que fazia dele um sobrevivente do campo nazi de Flossenbürg, permitindo-se publicar artigos sobre factos inventados na imprensa respeitável. Em 2005, quando o escândalo rebentou, a verdade veio à tona: a sua episódica passagem pela Alemanha tivera carácter voluntário, e nunca o regime de Franco o impediu de viver tranquilamente em solo catalão. Vem a propósito recordar que Claudio Magris e Vargas Llosa também escreveram sobre Enric Marco. O Impostor pode ser lido como a biografia de um mitómano, mas também como um livro de História, um diário em forma de thriller, ou mesmo a crónica jornalística dos «dias de fim de mundo». O autor admite ter rompido com a genologia clássica, artifício que dá azo a múltiplas abordagens da obra. Não é portanto de um romance que aqui tratamos, e não vem daí mal ao mundo. A prosa enxuta e o tema bem esgalhado tornam fútil a discussão. Não fazendo sentido ficcionar a vida de alguém que escolheu viver uma ficção, o autor cola-se à realidade. Sirva de exemplo a iconografia que ilustra o texto, em particular a lista de prisioneiros (manipulada) de Flossenbürg. Dividido em três partes, cada uma delas com secções próprias, e numeradas, O Impostor faz o relato de uma mentira. A verdade chegou tarde: «Marco nasceu num manicómio; a mãe estava louca. Ele também estará?» Javier Cercas é muito hábil na forma como constrói o patchwork dessa vida inventada. Primeiro A casca da cebola (vénia a Günter Grass), depois O romancista de si próprio e, precedendo o epílogo, O voo de Ícaro. O relato fecha com O ponto cego, texto na primeira pessoa sobre a responsabilidade do intelectual e o ofício de escrever. Fruto de investigação aturada, O Impostor não teria atingido o grau de nitidez que lhe reconhecemos se Javier Cercas não tivesse mantido longas conversas com Enric Marco e, naturalmente, com Benito Bermejo, «o historiador que revelou o embuste» e pensou escrever um livro sobre o caso. Quatro estrelas.
Escrevo ainda sobre a Prosa Escolhida de Álvaro de Campos, editada por Fernando Cabral Martins e Richard Zenith. O prefácio põe o acento tónico numa evidência: «muitos dos mais importantes textos em prosa publicados por Fernando Pessoa […] são assinados por Álvaro de Campos.» Esses textos estão aqui reunidos. A antologia abre com as “Notas para a recordação do meu Mestre Caeiro”, cerca de cinquenta páginas que auto-justificam Campos: «Quem me tira os testículos, tira-me só a possibilidade de todas as mulheres; quem me tira os olhos, tira-me a realidade do universo inteiro.» Mas também cartas, como a dirigida à revista Contemporânea, na qual discorre sobre a «imoralidade absoluta» de António Botto. E, colado ao tema (as Canções de Botto), o sibilino “Aviso por causa da moral”, no qual Campos reage, em 1923, à tranquibérnia dos estudantes fascistas que queimaram livros de Botto, Judith Teixeira e Raul Leal: «Bolas para a gente ter que aturar isto. […] Divirtam-se com mulheres, se gostam de mulheres; divirtam-se de outra maneira, se preferem outra.» Doravante, o leitor encontra num único volume um conjunto de textos (escritos entre 1915 e 1935) dispersos por várias publicações. Publicou a Assírio & Alvim. Cinco estrelas.