Hoje na Sábado escrevo sobre Nada Tem Já Encanto, antologia da poesia de Rui Knopfli (1932-1997) publicada nos vinte anos da morte do poeta. Um acontecimento. Pedro Mexia, que seleccionou os poemas a partir da obra completa do autor, tomou a decisão acertada de incluir dois livros na íntegra, Máquina de Areia (1964) e O Escriba Acocorado (1978), ambos «considerados um poema único dividido em várias secções». No tocante aos outros seis livros, a escolha privilegia os poemas que põem em pauta a identidade nacional (moçambicano ou português?) e a borrasca imperial: «Servidor incorruptível da verdade e da memória, / escrevo sentado e obscuro palavras terríveis / de ignomínia e acusação. […] A História que há-de ler-se é por mim escrita. / Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.» A obra de Knopfli, uma das grandes vozes da poesia de língua portuguesa, divide-se em duas fases distintas: a moçambicana (1959-72) e a do exílio (1978-97). Os seis anos de intervalo fizeram a catarse mnemónica que culminaria no livro derradeiro, O Monhé das Cobras (1997). Mas convém recuar meio século e ler os versos premonitórios de Reino Submarino (1962) ou, em registo oposto aos solavancos da História, verificar como Knopfli antecipou a poesia do real — vejam-se poemas como Fim de Tarde no Café, À Paris ou Guns in the Afternoon —, género, se assim lhe podemos chamar, que entre nós apenas seria consagrado na segunda metade dos anos 1970. Filho da burguesia fundadora e daquela Polana «mansa e boa» onde cresceu, Knopfli não receou fazer, antes do início da luta armada, o epitáfio da colonização. Sirvam de exemplo poemas como Certidão de Óbito («Um tempo de lanças nuas / espera por nós…») ou, sobre todos, O Preto no Branco, cujo último verso é o proémio da luta independentista: «Tudo quanto há-de gravar o meu nome / numa das balas da tua cartucheira. / Nessa bala hipotética, nessa bala possível / que se vier (ela há-de vir) // melhor dirá o que aqui fica por dizer.» Poeta déraciné, Knopfli logrou escapar ao inferno da «voz traída». O volume é prefaciado por Eugénio Lisboa. Cinco estrelas. Publicou a Tinta da China.
Escrevo ainda sobre Eu matei Xerazade. Confissões de uma mulher árabe em fúria, da libanesa Joumana Haddad (n. 1970), primeiro título de uma nova editora, Sibila, que chega às livrarias com uma colecção dedicada à palavra das mulheres. Joumana escreve poesia, literatura erótica e livros infantis. Este livro oscila entre o ensaio e memórias da autora. A ironia do título teria o seu equivalente português em ‘Eu matei Nossa Senhora’. Joumana desconstrói o mito da mulher árabe subserviente, temente a Alá e às exigências do corpo: «sou definitivamente aquilo a que se costuma chamar uma mulher de tomates, mas não sofro de nenhuma inveja do pénis». A autora confessa estar farta de «metáforas fálicas» (sabres, mangueiras, pilares, etc.) e, nessa medida, chama as coisas pelo nome. A tradução de Inês Pedrosa ajuda. Numa linguagem irreverente, defende a revista que fundou em 2008, com o intuito de falar de literatura e do corpo: «Mas o objectivo central da JASAD não é o de ajudar os homens a ejacular…» O livro fecha com uma «tentativa de autobiografia» em forma de poema. Quatro estrelas. Publicou a Sibila.