Reportando aos anos 2013 e 2014, Yvette K. Centeno acaba de publicar o primeiro volume dos diários a que chamou Sintomas. Fê-lo por indução de filhos e netos, curiosos, uns e outros, das origens polacas da família da mãe.
Yvette K. Centeno é uma grande autora mas, nunca tendo andado em bicos de pés, o seu nome soa pouco familiar fora do círculo de cognoscenti. Afinal, a Simbologia, de que é considerada a mais importante especialista portuguesa, não é uma área de livre trânsito. E quem diz Simbologia diz filosofia hermética, alquimia, mística judaica, estudos sobre Pessoa, Goethe ou Celan, três entre muitos sobre quem orientou seminários e proferiu conferências em Harvard, Oxford, Londres, Berlim, Paris, Madrid, Lisboa, Coimbra e outras cidades.
Sintomas abre várias janelas. Ficamos a saber que, durante a Segunda Guerra Mundial, sua mãe trabalhou numa organização internacional de apoio a fugitivos e exilados judeus, que o activismo político, marxista, levou seu pai mais de uma vez à prisão, que os anos (1946-50) de Buenos Aires foram consequência da repressão do Estado Novo, que Paris era um escape recorrente, e que a paixão do jazz era partilhada com o marido, o lendário contrabaixo Bernardo Moreira, aka Binau.
Yvette não diz, mas digo eu: Binau, engenheiro civil, um dos fundadores do Hot Club de Portugal, acrescentou três músicos à família e dirigiu durante quase vinte anos a Escola de Jazz Luís Villas Boas. Quem viu Belarmino (1964), de Fernando Lopes, lembra-se dele a tocar com o saxofonista belga Jean Pierre Gebler.
Numa escrita limpa, isenta de pose, Yvette K. Centeno fala do tempo que nos coube viver, da infância, do intervalo argentino, das fugas para Paris, da operação de B., de filhos, noras e netos, do 25 de Abril, das redes sociais, de amigos, entre eles Rui Zink, de Rilke, de autoras suas contemporâneas, da angústia do envelhecimento, de toda a sorte de trivialidades que preenchem o nosso quotidiano.
Natural de Lisboa, onde nasceu em 1940, filha de mãe polaca e pai português, poeta, ficcionista, dramaturga, ensaísta e tradutora, professora catedrática jubilada, Yvette K. Centeno foi co-fundadora do CITAC da Universidade de Coimbra, criou o Gabinete de Estudos de Simbologia da Universidade Nova de Lisboa, fundou o ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, viveu largas temporadas em Paris, conviveu de perto com os grandes da cultura europeia de século XX e, não obstante, mantém-se uma das personalidades mais discretas da cena literária.
Quem leu Entre Silêncios, o volume da sua poesia reunida publicado em 2019, ou Quem Se Eu Gritar (1962), As Palavras Que Pena (1972), A Alquimia e o Fausto de Goethe (1982), Fernando Pessoa: o Amor, a Morte, a Iniciação (1984), Literatura e Alquimia (1987) Os Jardins de Eva (1998), entre outros títulos, vai gostar de Sintomas, que prolonga, em aparente sottovoce, dois livros anteriores: Do Longe e do Perto (2011, diário) e No Rio da Memória (2017, memórias). Assim cheguem depressa os volumes subsequentes de Sintomas.
Com design de Mariana Viana, a capa reproduz o detalhe de uma pintura de Vera Kace. Parabéns, Yvette.
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