quinta-feira, 3 de outubro de 2019

JACKSON & DRNDIC


Hoje na Sábado escrevo sobre A Lotaria e Outras Histórias, de Shirley Jackson (1916-1965). Sendo a tradição gótica tão importante na literatura norte-americana, Ms Jackson conseguiu a proeza de construir uma das obras ficcionais mais sólidas do género, podendo medir-se com Hawthorne ou mesmo Edgar Allan Poe. Antes de morrer aos 48 anos de idade, escreveu seis romances, uma centena de contos, três volumes de memórias e quatro livros infantis. A Lotaria e Outras Histórias constitui a primeira, e única publicada em vida, das sete colectâneas em que os seus contos estão coligidos. O romance de terror A Maldição de Hill House, já publicado em Portugal, foi adaptado ao cinema duas vezes (1963 e 1999), tendo a Netflix feito a partir dele uma série de dez episódios. Outras obras suas foram igualmente adaptadas ao teatro, cinema e televisão. Juntamente com o conto titular que fecha o conjunto, o livro inclui outras 24 histórias e o poema de James Harris que serve de epílogo. Em 1948, quando a New Yorker publicou A Lotaria, a controvérsia foi enorme. Os leitores da revista ficaram chocados com o ritual de violência associado à festa (o dia da lotaria) da aldeia. Lido hoje, o que mais surpreende neste conto é o ponto de vista, feminista, da narradora. Por muito subtil que seja, a natureza anti-patriarcal é evidente. Num registo oposto, porque urbano, O Amante Demoníaco relata a história de uma mulher de 34 anos à procura do noivo (indo de casa em casa), no dia que julgava ser o do seu casamento. Outro exemplo “macabro” é A Renegada, a história de uma cadela que dizima as galinhas da vizinhança. Parece banal. O pior, o verdadeiro horror, subjaz à solução preconizada pelos filhos pré-adolescentes de uma pacata dona de casa: «A Sra. Walpole fechou os olhos sentindo, de súbito, mãos ásperas que a puxavam, pontas afiadas que lhe apertavam a garganta.»  São assim os contos de Shirley Jackson. Aparentemente triviais, sobre pessoas comuns, porém encharcados de genuína maldade. Não podendo comentar todos, gostaria de destacar, além dos citados, os seguintes: Charles, Estátua de Sal e O Dente. Cinco estrelas. Publicou a Cavalo de Ferro.

Escrevo ainda sobre Trieste, da escritora croata Daša Drndić (1946-2018). Traduzido a partir da versão em língua inglesa, é um documento para a história. Se dúvidas houvesse, a lista de 44 páginas com os nomes dos cerca de nove mil judeus deportados de Itália, aí está para o provar. A história de Haya Tedeschi, professora de matemática, nascida em 1923, em Gorizia, cidade italiana que foi outrora uma possessão do império austro-húngaro, é um pretexto para contar a história da Europa no século XX. A partir da cidade de Trieste, Daša Drndić compõe o mosaico do horror: parte de uma lista com os nomes de membros do Aktion T4 (o departamento nazi responsável pelo extermínio de doentes), os verbetes biográficos de alguns carrascos, excertos de interrogatórios dos Julgamentos de Nuremberga, velhas histórias de família, genealogias, retratos, poemas e citações de muitos autores: Pound, Ungaretti, Borges, Magris, Celan, T.S. Eliot e outros. Muito ténue, o fio condutor gira em torno da busca de um filho perdido. Quatro estrelas. Publicou a Sextante.