Hoje na Sábado escrevo sobre a autobiografia de Oliver Sacks (1933-2015), falecido no Verão passado. Não é comum que um neurologista seja um autor bestseller, mas foi o que sucedeu com Sacks, que tem catorze livros traduzidos em Portugal, e a sua prosa «demasiado fácil de ler» aproximou-o do grande público. Dito de outro modo, nunca teve necessidade de “embrulhar” a escrita em jargão técnico, fazendo com que livros de ciência médica fossem lidos por milhões de pessoas comuns. Isso fez dele um nome de referência: «Sou um contador de histórias, para o melhor e para o pior.» Um bom exemplo da sua popularidade pode ser ilustrado pelo facto de Despertares (1973) ter sido adaptado ao teatro por Harold Pinter e ao cinema por Penny Marshall, no famoso filme de 1990 que juntou Robert De Niro e Robin Williams. Discreto no tocante à sua vida privada, Sacks publicou a autobiografia quatro meses antes de morrer — Em movimento. Uma vida. O livro foi lançado em Abril deste ano, mas em Fevereiro já o autor havia publicado um artigo no New York Times anunciando ter chegado ao fim a luta contra a doença: «Sinto gratidão pelos nove anos de boa saúde e produtividade desde o primeiro diagnóstico, mas agora estou perante a morte. O cancro ocupa um terço do meu fígado [...] Não posso fingir que não tenho medo.» Sacks inspirou-se no exemplo de David Hume, o filósofo escocês que em 1776, sabendo que ia morrer, escreveu My Own Life, a sua breve autobiografia. Em movimento. Uma vida é a história de um homem nascido e educado na Inglaterra («o meu lar»), no seio de uma família judaica, mais tarde radicado nos Estados Unidos onde se consagrou como médico e professor, escrevendo livros que o tornaram célebre em todo o mundo. Filho e irmão de médicos, Sacks revela-se por inteiro: família, formação em Oxford, culto das motas, depressão após uma experiência laboratorial mal sucedida, homossexualidade reprimida até entrar na idade adulta (virgem aos 22 anos, relata com brutal franqueza a primeira vez que foi sodomizado), temporada num kibutz em Israel, sexo e bodybuilding, a paixão por música, arte e literatura, a amizade com o poeta Thom Gunn, a vida académica, as descobertas e avanços da medicina, a relação com os pacientes, o melanoma no olho direito, a construção do mito, a razão de cada livro que escreveu, a vida em comum com Billy Hayes nos últimos seis anos de vida. Notável. O volume inclui portfolio fotográfico, mas ressente-se da ausência de índice remissivo. Cinco estrelas.
Escrevo ainda sobre Uma Rapariga Endiabrada, de Nick Hornby (n. 1957), autor que também escreve para cinema e esteve vários anos afastado da literatura. Agora faz-nos regressar à Inglaterra dos anos 1960. Barbara Parker, protagonista do romance e vencedora do concurso Miss Blackpool, não se contenta com a glória local. E parte para Londres com o propósito de ser uma nova Lucille Ball. O plot gira em torno dos bastidores da rodagem de uma série de televisão, havendo quem veja nele uma variante do argumento, escrito por Hornby, de Uma Outra Educação, o filme de Lone Scherfig. O mais interessante é a radiografia dos sixties, quando Mick Jagger ainda não era um canastrão e Harold Wilson ocupava o n.º 10 de Downing Street apesar dos rumores de que seria agente do KGB. O retrato “de época” não dispensa sexo no formato pós-1963 (conforme ao poema de Larkin), quota autobiográfica e, nos interstícios da ficção, envios a personagens reais da swinging London. São aliás recorrentes as entradas de autores, actores, obras e acontecimentos: a estreia de Hair, o musical de 1967 que sinalizou a contracultura hippie, é descrita com nostalgia e cinismo. Hornby tem uma escrita ágil, mas isso não é novidade para quem leu Alta Fidelidade. Editou a Porto Editora. Três estrelas e meia.