José Pacheco Pereira, hoje no Público. Excertos, sublinhados meus:
«O que fez o Presidente da República na sua declaração foi dar uma chicotada nos portugueses — por singular coincidência, a maioria — de que ele considera não ser o Presidente. Não foi uma chicotada psicológica, mas uma chicotada real. [...]
Embora não o tenha dito explicitamente, disse com clareza suficiente que não dará posse a um governo PS-BE-PCP, com maioria parlamentar, que ele entende ser maldito, sugerindo que, mesmo que o Governo PSD-CDS não passe na Assembleia, poderá deixá-lo em gestão até que haja condições para haver novas eleições. O facto de apenas o ter subentendido pode indicar que possa recuar, mas o tom agressivo das suas considerações faz com que, se o fizer, isso equivalha a uma gigantesca manifestação de incoerência e impotência, em si mesma um factor de instabilidade. [...]
Num só acto o Presidente garantiu longos meses de instabilidade política, um confronto permanente entre instituições, uma enorme radicalização da vida política, e tornou-se responsável pelas consequências económicas que daí advenham. A aceitarem este rumo, Cavaco Silva e Passos Coelho passam a ser os principais sujeitos dos efeitos negativos na economia e na sociedade, desta instabilidade [...]
Na verdade, o que é ainda mais grave é que se mostrou disposto a deteriorar a situação económica do país, e a sua posição face aos “mercados”, que até agora não reflectiram o catastrofismo do discurso interno do PSD-PS e externo do PPE, e que, se agora o começarem a fazer, é porque o Presidente abriu uma frente de guerra e de instabilidade que dificilmente se resolverá. [...]
Nunca, desde o 25 de Abril, um Governo serviu a direita ideológica e dos interesses como o tandem troika-PSD-CDS. Nunca foi tão grande a troca mútua de serviços entre a “Europa” e a direita política. [...] A aliança do PSD-CDS com os interesses económicos consolidou-se como nunca. Os passeios de Sócrates com os empresários, muitos que agora andam atrás de Passos, Portas e Pires de Lima, são uma brincadeira de meninos com o que se passa hoje. Sócrates distribuiu favores e benesses, Passos e Portas, apoiados na troika, mudaram as regras do jogo em áreas decisivas para o patronato que precisa de poder despedir sem grandes problemas, baixar salários e contar com uma enorme pool de trabalho precário, e de uma ecologia fiscal e social favorável aos “negócios”. Deram-lhes um incremento de legitimação ao propagandearem uma economia que era feita apenas de empresas, empresários e “empreendedorismo”, mas em que os trabalhadores são apenas uma maçada uma vez por mês para pagar salários. Ofereceram-lhes uma voz política como nunca tiveram, e uma voz em que a “economia” passou a significar governar como eles governaram, ou seja, a “economia” exige que se governe à direita, e em que os “mercados” passaram a estar acima da democracia e do voto. E nunca até agora uma poderosa máquina ideológica e comunicacional existiu para proteger estes interesses económicos e políticos. [...]
Outro dos efeitos perversos da comunicação presidencial foi condicionar a próxima eleição presidencial ao dilema da dissolução ou não da Assembleia. [...]
Por último, o Presidente, com a sua declaração de guerra, terá a guerra que declarou. Ao apelar à desobediência dos deputados do PS, tornará muito difícil que eles desobedeçam, sob pena de se tornarem párias no seu próprio partido. Ajudou a consolidar a vontade do PS, BE e PCP de defrontarem em comum o PSD-CDS, e abriu espaço para o imediato anúncio, que ainda não tinha sido feito, de que o PS apresentaria uma moção de rejeição. [...]
Onde a mensagem do Presidente — sugerindo, mesmo que não o diga com clareza, que possa manter o Governo Passos Coelho em gestão até novas eleições — é mais grave é no confronto que faz à Assembleia da República. É que se o Governo pode estar em gestão, a Assembleia não o está. É detentora dos seus plenos poderes constitucionais. Pode não só impedir a legislação oriunda do Governo, como pode ela própria legislar e avocar muitos actos que o Governo venha a praticar. Ou seja, numa situação de conflito entre um Governo que recusou e os seus próprios poderes, a Assembleia pode “governar” sem limitações em muitas matérias. E que fará o Presidente? Veta de gaveta, devolve os diplomas, manda para o Tribunal Constitucional? Os precedentes que este conflito pode gerar mostram como a comunicação presidencial está, ela sim, no limite do abuso e da usurpação de poderes.»