segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O NAVIO FANTASMA


Passados 50 anos sobre o Caso Angoche, o que se passou continua a ser um mistério.

Apenas se sabe que, no dia 24 de Abril de 1971, foi avistado à deriva, com fogo a bordo, entre as cidades de Quelimane e da Beira (costa de Moçambique), o navio de cabotagem Angoche, da Companhia Moçambicana de Navegação. O alerta foi dado no dia 27 pelo petroleiro Esso Port Dickson, com pavilhão do Panamá. Está por esclarecer o hiato de três dias. Curiosamente, Moçambique só reportou o caso a Lisboa a 6 de Maio. E foi a PIDE que o fez, tendo o relatório desaparecido depois do 25 de Abril.

O Angoche transportava material de guerra, treze tripulantes negros, dez tripulantes brancos e um cão. Não havia registo de passageiros, mas há quem sustente a presença de um. O navio tinha saído de Nacala na véspera, com destino a Porto Amélia (Pemba), no Norte, mas, em vez disso, rumou a Sul.

Quando, no dia 3 de Maio, a polícia marítima e a PIDE conseguiram entrar a bordo, encontraram apenas o cão. O cão e sinais de explosões na ponte de comando e na casa das máquinas, estando inoperantes todos os sistemas de comunicação. O material de guerra sumiu. Nas cabines dos tripulantes brancos não havia qualquer vestígio de pertences, como vestuário, calçado e objectos pessoais.

As polícias políticas da África do Sul (a BOSS) e da Rodésia (a CIO) juntaram-se à PIDE, mas nada de concreto transpirou para a opinião pública. 

O Angoche foi atacado? Em caso afirmativo, por quem? Golpe interno executado pela ARA? O que aconteceu aos 23 homens? Por que razão os tripulantes negros deixaram tudo a bordo, incluindo os coletes de salvação? Por que razão o radiotelegrafista se “esqueceu” de embarcar, ficando em Nacala? 

O navio foi rebocado para a baía de Lourenço Marques, onde chegou a 6 de Maio. Estando o navio a cem milhas da Beira, não teria sido mais lógico ser rebocado para lá? O suicídio de uma cabareteira da Beira, tida como próxima de um oficial da tripulação, adensou o mistério.

Nos círculos da oposição democrática moçambicana constava que a tripulação tinha sido levada para Dar es Salaam, na Tanzânia. Fantasia? Seja como for, o governo de Julius Nyerere desmentiu categoricamente. Também se falou de um submarino russo. Delírio? Parte desses homens voltou a Portugal? Quando e em que circunstâncias? Quanto sei, as famílias nunca comentaram o assunto.

Prevalecem duas versões: vários tripulantes, brancos e negros, teriam sido executados em Nachingwea, o campo de reeducação que a FRELIMO manteve na Tanzânia até aos anos 1990; os restantes teriam regressado a Portugal ao fim de alguns anos. Mas tudo isto são suposições.

Sobre o assunto estão publicados pelo menos três livros, um deles, o único que li, de Eduardo Metzner Leone. Se os media querem discutir a Guerra Colonial e, por arrasto, a descolonização, investiguem. Com a bibliografia disponível nem é necessário partir muita pedra.

Na imagem, o Angoche adernado na baía de Lourenço Marques em 1971.