quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

SEIS MULHERES


Hoje na Sábado.

À beira de completar 48 anos, a francesa Vanessa Springora (n. 1972), editora da Julliard, publicou Consentimento, primeiro e único livro que escreveu, logo premiado com o prémio Jean-Jacques Rousseau para literatura autobiográfica. A onda de choque atingiu os leitores não familiarizados com os interditos do demi-monde, mas não surpreendeu o meio literário. Poucos ignoram que Gabriel Matzneff gosta de rapariguinhas — e também de rapazinhos —, preferência documentada ao longo da obra, razão pela qual as revelações de Vanessa Springora acrescentam pouco. Perturba descobrir os detalhes da intensa ligação sexual, consentida, que uniu V. e G., ou seja, entre uma rapariga de 14 anos e um homem de 50, mas literatura não é sinónimo de moral. Além do prémio, Consentimento vendeu cerca de cem mil exemplares. Entretanto, os livros de Matzneff, hoje com 84 anos, foram retirados de muitas livrarias francesas, em especial o ensaio Les Moins de Seize Ans (1974). Vanessa Springora resume: escrevi para «apanhar o caçador na sua própria armadilha, prendê-lo num livro.» Valeu a pena?

Acaba de ser traduzido o romance mais recente de Mariana Enriquez (n. 1973), A Nossa Parte da Noite. Jornalista e escritora argentina, a obra de Mariana Enriquez adapta ao imaginário sul-americano a tradição gótica. A partir desse amálgama de fantasia e horror, a autora constrói um universo que os leitores portugueses conhecem desde, pelo menos, As Coisas Que Perdemos no Fogo (2017). Retrato cru da ditadura militar argentina, A Nossa Parte da Noite não constitui excepção. O facto de o fazer por intermédio de uma narrativa que mistura médiuns, satanismo, masmorras, rituais de sexo, etc., não belisca a descrição da tragédia em que o país viveu mergulhado.

Enquanto não chega a biografia de Agustina Bessa-Luís escrita pelo historiador Rui Ramos, um novo contributo faz luz sobre a vida da grande escritora. Refiro-me a Sapatos de Corda, de Mónica Baldaque, relato desempoeirado da vida da mãe: relações de família, o Douro, a Obra, os anos de Esposende, a casa do Gólgota, os Verões em Guéthary, a desconfiança do milieu literário, o enfado com o paroquialismo indígena, a política, as viagens, os filmes de Manoel de Oliveira, a saída de cena em 2007, a presença constante de Alberto Luís. Vasta iconografia ilustra o livro, cheio de episódios surpreendentes, como, entre outros, o do Jaguar que pediu (e recebeu) a título de royalties… Imprescindível.

A obra de Rachel Ingalls (1940-2019) é um dos segredos mais bem guardados da literatura de língua inglesa. Admirada pelos seus pares e nos círculos cultos dos dois lados do Atlântico, não é um nome familiar ao grande público. Agora temos Mrs. Caliban para avaliar a excelência desta americana que viveu quase toda a vida na Inglaterra. Se viu A Forma da Água (2017), o filme de Guillermo del Toro, fica com a sensação de que ele se “inspirou” no livro de 1983. Decerto não por acaso, a obra-prima de Rachel Ingalls foi reeditada em 2017. Enfim, até um leitor distraído se interroga sobre onde viu ou ouviu falar de uma mulher apaixonada por um anfíbio gigante com pele verde-acastanhada. Felizmente, a prosa da autora é infinitamente superior às capacidades do cineasta. Quem gosta de fábulas (esta é sobre solidão) vai com certeza deliciar-se com este romance breve mas intenso.

Um novo subgénero faz o seu caminho: o da literatura de imigrantes sem resquícios de auto-complacência. É o caso de Yaa Gyasi (n. 1989), nascida no Gana, radicada desde criança nos Estados Unidos, autora de dois livros, ambos premiados sob aplauso geral. Reino Transcendente relata o quotidiano de uma doutoranda de Stanford, oriunda de África, forçada a gerir as obrigações académicas com a depressão da mãe. Numa escrita fluente, Yaa Gyasi diz o que tem a dizer sem os clichês associados ao proselitismo étnico da political correctness.

Até aos anos 1970, a literatura francesa foi determinante na cultura do Ocidente. Quase todos crescemos à sombra da vasta plêiade que vai de Balzac a Marguerite Duras, mais uma centena entre ambos. Isso acabou. Annie Ernaux (n. 1940) destaca-se nas raras excepções, como descobrirá quem ler Uma Paixão Simples, brevíssimo récit que volta às livrarias na irrepreensível tradução de Tereza Coelho. Só uma grande autora podia escrever um livro assim, misto de diário («não conto uma história») e bloco de notas, 70 páginas de uma crueza desarmante: «Não quero explicar a minha paixão […] quero, simplesmente, expô-la.» Notável.

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