quinta-feira, 19 de março de 2020

BALDWIN & DESPENTES


Foi finalmente traduzido entre nós o primeiro livro escrito por James Baldwin (1924-1987), o romance autobiográfico Se o Disseres na Montanha, motivo de querela nos círculos académicos anglo-americanos: romance afro-americano ou romance gay...? Seja como for, em mais de vinte obras publicadas pelo autor, um ensaísta notável, a segunda a chegar à edição portuguesa. Nimbado de ressonâncias bíblicas, desde logo a partir do título, mas também ao nível sintáctico, o plot centra-se na figura de John Grimes, um adolescente do Harlem cujo pai fora pregador pentecostal, com o padrasto do autor. Nunca tendo conhecido o pai biológico, o livro nasce da relação conflituosa que Baldwin mantinha com o marido da mãe, um clérigo sulista. Ao fim de anos de persistência, Se o Disseres na Montanha foi terminado em 1951, nos Alpes suíços, em casa de um namorado do autor. Foi nesse cenário em tudo diferente do que fora a sua vida pretérita (em Nova Iorque, onde nasceu, e em Paris para onde foi viver aos 24 anos), que Baldwin, neto de escravos, crente «até ao dia em que o pecado o surpreendeu pela primeira vez...», fixou as memórias que o levaram à descoberta do sexo e a uma progressiva descrença religiosa. Dito de outro modo, um mergulho na infância e pré-adolescência de um rapaz negro, pobre e homossexual, nascido na América dos anos 1930. Dividido em três partes e cinco capítulos, o livro fixa-se sucessivamente nas reflexões do protagonista (um miúdo de catorze anos), na tia, no padrasto, na mãe e de novo no rapaz. Em 1935 a sociedade não reconhecia questões identitárias, a fé era um dogma, e os negros caricaturados com todo o tipo de clichês. Por que ninguém sai impune da apostasia, um sentimento de culpa percorre o livro: «Odiava o mal que habitava o seu corpo…» O juízo tanto é válido para as reflexões de John (alter-ego do narrador) como para os flashbacks relacionados com a família. Sem surpresa, Se o Disseres na Montanha é justamente considerado um dos pontos de partida do movimento dos direitos civis dos negros americanos. Cinco estrelas. Publicou a Alfaguara.

Saiu agora a tradução do segundo volume da trilogia Vernon Subutex, da francesa Virginie Despentes (n. 1969), personalidade da cena literária desde 1994, o ano em que, após ter exercido meia dúzia de profissões pouco “convencionais”, publicou o primeiro romance. Malgré o halo de escândalo, Vernon Subutex não tem a força de Apocalypse Baby, laureado com o Renaudot e também traduzido entre nós. Subutex, o apelido do herói, corresponde a um dos nomes comerciais da buprenorfina, o medicamento usado na dependência de drogas. Tal como em livros anteriores, Virginie Despentes descreve o que considera a decadência da França, mas o discurso aproxima-se mais da memorabilia hippie do que da análise fria da luta de classes: «Lembra-te, Vernon, entrámos no rock como quem entra numa catedral, e a nossa história era uma nave espacial.» Este volume retoma a história no ponto em que termina o primeiro, trazendo a abrir o índice das personagens respectivas. Vai ser preciso esperar pelo terceiro para avaliar onde a autora quis chegar. Três estrelas. Publicou a Elsinore.