sábado, 2 de novembro de 2019

SENA, CEM ANOS


Faz hoje cem anos que nasceu Jorge de Sena (1919-1978), o mais importante intelectual português do século XX. Poeta, romancista, contista, dramaturgo, ensaísta, camonista, historiador da literatura, memorialista, crítico, antologiador, tradutor e professor, Sena é uma figura ímpar da língua portuguesa. 

De um texto que escrevi e publiquei em 1999, mais tarde coligido no meu livro Comenda de Fogo (2002), respigo alguns acidentes biográficos. Não é uma transcrição do texto original. As obras citadas correspondem a uma ínfima parte da bibliografia do autor.

Natural de Lisboa, Sena fez estudos de piano e foi aluno de Rómulo de Carvalho (o poeta António Gedeão) no Liceu Camões. Aos 17 anos ingressou na Escola Naval, tendo feito uma viagem no navio-escola Sagres, entre Outubro de 1937 e Fevereiro de 1938. Em 14 de Março de 1938 foi excluído da Marinha de Guerra.

Sob o pseudónimo de Teles de Abreu publicou os primeiros textos em Março de 1939. O primeiro livro  —  Perseguição  —  saiu em Junho de 1942. Concluiu o curso de engenharia civil em Novembro de 1944. Viu-se obrigado a fazer o serviço militar entre 1945 e 1946. Durante doze anos (1947-59) desenvolveu actividade profissional no ministério das Obras Públicas. Em Março de 1949 casou-se com Maria Mécia de Freitas Lopes, irmã de Óscar Lopes. Co-dirigiu as 2.ª e 3.ª séries dos Cadernos de Poesia (1951-53). Fez um estágio de engenharia em Inglaterra, no ano (1952) em que começou a traduzir os poemas ingleses de Fernando Pessoa. Em 1953, divulgou a poesia de Kavafis.

A PIDE apreendeu As Evidências (1955), rotulando o livro de subversivo e pornográfico. Publicou a tradução de Porgy & Bess. A 11 de Março de 1959 envolveu-se no frustrado Golpe da Sé e, no mês seguinte, publicou o primeiro volume de ensaios, Da Poesia Portuguesa. Face à situação política do país, parte a 7 de Agosto para o Brasil, desembarcando no Recife. Mécia e os sete filhos nascidos em Portugal juntam-se-lhe a 17 de Outubro.

O exílio brasileiro, que duraria seis anos, foi o corolário de uma intricada teia de insatisfações. Discurso directo: «Em Portugal, se eu me tivesse lançado na engenharia particularmente, à margem da minha actividade oficial de funcionário, poderia ter ganho muito dinheiro talvez. E houve muitas pessoas que estranhavam que o não fizesse. Mas se eu tivesse feito isso, quando teria sido o escritor que, em 1959, tinha títulos suficientes para mudar de vida

O início da docência universitária  —  na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, em São Paulo  —  mudou tudo, porque «uma situação financeiramente desafogada [...] bolsas de pesquisa, etc., me garantiram a possibilidade de dedicar-me integralmente à produção literária.» No Brasil, à margem da docência, foi director literário da Editora Agir, do Rio de Janeiro, fez conferências, participou de congressos, e colaborou largamente na imprensa. Em 1960 publica Andanças do Demónio, primeira colectânea de contos. Demitiu-se da direcção da Unidade Democrática Portuguesa no mesmo ano em que publicou O Reino da Estupidez. Em Março de 1963 torna-se cidadão brasileiro. No ano em que começa a escrever Sinais de Fogo, prestou provas de doutoramento (1964) com uma tese sobre Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular.

Entretanto, na sequência do golpe militar brasileiro de 31 de Março de 1964, Sena foi demitido por telefone da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto, onde desde 1962 era professor visitante. O ambiente torna-se irrespirável e Sena troca o Brasil pelos Estados Unidos. Tem agora mais dois filhos, nascidos em terra brasileira. 

A 7 de Outubro de 1965, após seis anos de Brasil, Sena e a família desembarcam em Nova Iorque, em trânsito para a Universidade do Wisconsin (Madison). Os treze anos seguintes, os anos americanos, foram uma sucessão de realizações académicas (em 1967 foi nomeado professor catedrático efectivo de Literatura Portuguesa e Brasileira), colóquios e congressos internacionais, viagens planetárias, conferências em vários países, trabalho insano, uma obra notável que não parou de crescer: «Podereis roubar-me tudo: / as ideias, as palavras, as imagens, / e também as metáforas, os temas, os motivos [...] E podereis depois não me citar, / suprimir-me, ignorar-me, aclamar até / outros ladrões mais felizes [...] Nada tereis, mas nada: nem os ossos, / que um vosso esqueleto há-de ser buscado, / para passar por meu. E para outros ladrões, / iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo

De Portugal chega uma tardia consagração: a revista O Tempo e o Modo dedica-lhe, em Abril de 1968, o n.º 59, inteiramente dedicado (são 134 páginas) à sua pessoa: nota de abertura, breve autobiografia, entrevista sulfurosa, antologia seniana, artigos de fundo e depoimentos de 24 escritores. Foi uma espécie de reconciliação nacional, embora persistissem muitos anticorpos. E quando, a 22 de Dezembro, tenta entrar em Portugal, é detido pela PIDE na fronteira de Valencia de Alcantara. Blanc de Portugal intercede junto de Marcello Caetano e ao fim de 24 horas concedem-lhe visto de entrada. Ficará em Lisboa durante dois meses. 

Em 1969 sai Peregrinatio ad Loca Infecta e, no ano seguinte, muda-se do Wisconsin para a Califórnia. Em Julho de 1972 visita Moçambique, proferindo três conferências em Lourenço Marques. Durante uma visita à ilha de Moçambique, na companhia de Rui Knopfli, escreve: «[...] Tudo passou aqui  —  Almeidas e Gonzagas, / Bocages e Albuquerques, desde o Gama. / Naqueles tempos se fazia o espanto / desta pequena aldeia citadina / de brancos, negros, indianos e cristãos, / e muçulmanos, brâmanes e ateus. / Europa e África, o Brasil e as Índias, / cruzou-se tudo aqui neste calor tão branco / como do forte a cal no pátio, e tão cruzado / como a elegância das nervuras simples / da capela pequena do Baluarte. / Jazem hoje aqui em lápides perdidas / os nomes todos dessa gente que, / como hoje os negros, se chegava às rochas, / baixava as calças e largava ao mar / a malcheirosa escória de estar vivo [...] como se te limparas de miséria, / e de desgraça e de injustiça e dor / de ver que eram tão poucos os melhores, / enquanto a caca ia-se na brisa esbelta, / igual ao que se esquece e se lançou de nós.» 

Publicará ainda duas excepcionais colectâneas de poesia, Conheço o Sal... e Outros Poemas (1974) e Sobre Esta Praia... Oito Meditações à Beira do Pacífico (1977), considerado o seu testamento poético: «Deitados no saber de ao sol queimarem / o mais oculto de si mesmos são / dois jovens e uma jovem misturados. / Um dos rapazes se recosta contra o corpo / do outro rapaz que alonga dorso e pernas [...] São, como deuses, animais sem cio? / Ou são, como animais, humanos que se aceitam? / Ela é de quem? De um deles só, dos dois? / Um deles será dela mas também do outro? / Será cada um dos três dos outros dois? / Ambos os machos serão fêmeas do outro? / Ou só um deles? Qual dos dois? O que / sentado se recosta? O que deitado / aceita contra o seu o corpo recostado? / Os três são muito belos... [...]» 

Apesar da doença que o mina, agravada por problemas cardíacos, vê publicados os contos reunidos em Os Grão Capitães (1976) e a novela O Físico Prodigioso (1977), agora editada isoladamente. Em Abril de 1977 recebe o prémio internacional de poesia Etna-Taormina, na Sicília. Na ocasião, dirá: «A minha poesia nada tem de patriótica ou de nacionalista, e eu sempre me quis e me fiz um cidadão do mundo, no tempo e no espaço

Vem depois a Portugal, para conferências na Gulbenkian e no 10 de Junho. O discurso da Guarda, no Dia de Portugal, a convite de Eanes, comentado por dois coevos ilustres  —  Saramago e Vergílio Ferreira  —, dá a medida do feedback nacional. Para Saramago, foi uma «imprecação lançada contra os ouvidos rolhados dos espectadores de perto e de longe». Para Vergílio, todo o azedume foi pouco: «E o Jorge de Sena fez a sua cena. Berrou, gesticulou, invectivou. Foi aclamado em delírio. A mesa da presidência veio toda em peso palmear-lhe as costas. Fiquei logo subalternizado.» Sobrou-lhe um sacudido ano de vida. Mágoa maior, o descaso da Universidade portuguesa, que lhe fechou as portas.

O último poema  —  Aviso a cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males  —  foi escrito a 19 de Março de 1978. Antes de morrer, ainda vê publicadas as suas Dialécticas Aplicadas da Literatura bem como as Antigas e Novas Andanças do Demónio, obras centrais do ensaio e da ficção senianas.

Em Junho de 1978, quando morreu em Santa Bárbara, na Califórnia, tinha 58 anos. Em Setembro de 2009 os restos mortais foram trasladados para Lisboa.

Mas Sinais de Fogo, obra maior da ficção romanesca em língua portuguesa, provavelmente o romance mais importante do século XX português, só foi publicado postumamente, como também as colectâneas poéticas 40 Anos de Servidão (1979), Sequências (1980), que tem tido uma recepção crítica eviesada, fruto talvez da desembaraçada ultrapassagem de vários interditos, Visão Perpétua (1982), os dois volumes da juvenília reunida por Mécia de Sena em Post-Scriptum II (1985) e os magníficos 80 Poemas de Emily Dickinson (1979). Por escassas semanas, também Poesia do Século XX, que fecha o homérico trabalho de tradução iniciado com Poesia de 26 Séculos (1972), se lhe tornou obra póstuma.

Clique na imagem, o retrato de Sena por Fernando Lemos.