Hoje na Sábado escrevo sobre a notável Antologia de Poesia Erótica Brasileira organizada por Eliane Robert Moraes, professora de literatura brasileira e especialista na obra de Bataille, que agora chegou à edição portuguesa. Uma antologia de poesia erótica causa sempre embaraço nos espíritos sensíveis. Uma antologia (não confundir com um compêndio de poemas), isto é, uma selecção fundamentada, com critérios bem definidos e notas biobibliográficas dos autores. A organizadora assina a introdução, a nota editorial, e um longo estudo crítico em forma de posfácio. O espectro temporal é muito longo: vai de 1623 (Gregório de Matos) a 1963 (Claudia Roquette-Pinto), ou seja, mais de trezentos anos. O leitor pode aferir o modo como a poesia brasileira se libertou do cânone português a partir de 1922, graças à ‘revolução’ operada pela Semana de Arte Moderna de São Paulo. É deveras irónico verificar como Mário de Andrade, o poeta que fez a Semana para cortar o cordão umbilical com a tradição portuguesa, aparece representado com poemas pudibundos: «Aceitarás o amor como eu o encaro?...» Representado por 44 poetas, além dos anónimos, o século XIX é uma surpresa para qualquer leitor. Múcio Teixeira e Moysés Sesyom são revelações absolutas, mas nenhum pisa o risco do classicismo. Carlos Drummond de Andrade dispensa o linguajar fescenino, mas isso não dilui a força dos versos. A antologia recolhe autores canónicos, como os já citados Matos, Andrade e Drummond, mas também Tomás António Gonzaga, Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Gilka Machado, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Millôr Fernandes, Ferreira Gullar, Hilda Hilst — Extasiada, fodo contigo / Ao invés de ganir diante do Nada —, Adélia Prado, Paulo Leminski, Antonio Cicero, Paulo Henriques Britto, Ana Cristina Cesar e Paulo Franchetti. Nascido em 1954, Franchetti assina um dos melhores poemas da selecção, O Fauno (pp. 258-9). A ausência de Eucanaã Ferraz não faz sentido, porquanto a sua poesia não é mais elíptica que a de outros seleccionados, detonando «comparações de grande alcance lírico» como as creditadas a João Cabral de Melo Neto. Em suma: indispensável. Cinco estrelas. Publicou a Tinta da China.
Escrevo ainda sobre Mea Culpa, o romance de Carla Pais (n. 1979) que esteve para vencer o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís, da Sociedade Estoril Sol, mas o júri foi obrigado a anular a escolha por ter havido violação do regulamento, não tendo o prémio sido atribuído a nenhuma das outras obras concorrentes. De facto, Mea Culpa não é a primeira obra da autora. Radicada em França, Carla Pais passou pela dura experiência da emigração, mas o livro tem acção centrada em Portugal, num lugarejo remoto onde nada parece ser o que é. Faz pouco sentido encontrar um exemplar do Livro do Desassossego naquele cenário, mas a deriva culturalista é uma pulsão recorrente na obra de autores novos. O realismo fantástico também: «A esposa do senhor presidente vem nua pela rua, traz na testa o suor dos pesadelos que atravessam a noite e repousam no sono.» A isto é de uso chamar-se ‘prosa poética’, embora, neste caso, o vernáculo («a filha que fodeu junto à figueira») dê cabo do propósito. O mais interessante é a tentativa, de certo modo conseguida, de provar que o sol não nasce da mesma maneira para todos. Três estrelas e meia. Publicou a Porto Editora.