quinta-feira, 7 de abril de 2016

ANA ZANATTI


Hoje na Sábado escrevo sobre O Sexo Inútil, de Ana Zanatti (n. 1949), mais conhecida como actriz, mas autora de romances, contos, poemas e literatura para a infância. Trata-se de um ensaio aberto sobre o universo LGBT. Chamo-lhe ensaio aberto porque a autora teve a habilidade de driblar a genologia. Uma obra pioneira por dar a conhecer o interdito: a violência exercida no seio da família sobre rapazes e raparigas que têm a coragem de assumir a sua identidade homossexual, em meios urbanos e classes letradas, no coração da alta classe média de Lisboa e Cascais. O senso comum torna difícil associar este tipo de comportamentos a estratos “educados” da sociedade? O ponto é esse: fazer luz sobre o inominável. Será com um misto de perplexidade e vergonha que muitos leitores irão interrogar-se: como é possível, na Europa do século XXI? A síntese de Viriato Soromenho-Marques, autor do prefácio, é perfeita: «Este é um livro sobre o que de mais profundo vive no coração da condição humana.» Num hábil patchwork, Ana Zanatti intercala a correspondência trocada com Joana, nome fictício da jovem universitária que corrobora o drama em pauta, com envios de natureza autobiográfica, reflexões sobre a sociedade portuguesa, excertos do diário da adolescência, bem como dezenas de testemunhos, de pais e filhos, quase todos sob anonimato. Num apêndice, coligem-se histórias na primeira pessoa, algumas das quais colocadas em linha no site da rede ex aequo. Uma epígrafe de Virginia Woolf, «The eyes of others, our prisons; their thoughts, our cages», sinaliza a sanção. Ser hetero ou homossexual (uso o termo para ambos os sexos) não é uma escolha. Verdade que a diferença contraria a norma, mas a letra da Lei não pode ter dois pesos e duas medidas conforme se esteja na esfera pública ou privada. No dia em que a dualidade acabar, poderemos falar de avanço civilizacional. Sejamos claros: este é um livro contra o preconceito. Ana Zanatti faz um tour d’horizon entre os anos 1960 (a sua adolescência) e a actualidade. O retrato incomoda mas é nesse “atrito” que reside a sua força. Lídia Jorge assina o posfácio. Quatro estrelas.

Escrevo ainda sobre Estufa com Ciclâmenes, de Rebecca West (1892-1983). Quando a Primeira Grande Guerra terminou, a autora escreveu um romance, O Regresso do Soldado, sobre o conflito que devastou a Europa entre 1914 e 1918. Ainda nenhuma mulher o havia feito.  Agora volta a servir-se da guerra como Leitmotiv. Simbiose de jornalismo literário e ensaio, o livro colige três textos de A Train of Powder, uma extensa reportagem sobre os julgamentos de Nuremberga, aos quais a autora assistiu como enviada do Daily Telegraph. Sem perder de vista as implicações morais, Rebecca relata os factos com objectividade: «Na primeira parte da leitura da sentença não houve referências aos acusados, apenas às instituições que haviam formado.» Quando o jornal lhe pediu para cobrir os julgamentos, era já uma autora consagrada, com cinco romances e sete livros de não-ficção publicados. Desde sempre ligada à política, feminismo incluído, manteve uma longa relação com H. G. Wells, pai do seu filho. Estufa com Ciclâmenes suscita um problema prático: o livro vai para a estante de Literatura, ou para a de História? Diria, sem favor, que fica bem nas duas. Quatro estrelas. Editou a Relógio d’Água.