Ontem, no Diário de Notícias, Fernanda Câncio publicou dois textos sobre os 40 anos da Descolonização. No primeiro, cita conversas tidas comigo, com Isabela Figueiredo, Dulce Maria Cardoso e Vanessa Rato. No segundo, faz o mesmo com Inês Gomes, autora da série Depois do Adeus, e Elsa Peralta, curadora da exposição Retornar.
Como a Fernanda facultou um desses textos no FB, já apareceu uma criatura a manifestar irritação («Confesso que estes relatos por muito criticos que sejam, irritam-me») e a citar, em inglês, um cidadão do Gana. Não sei nem me interessa saber que partes dos relatos provocaram azia. Da longa conversa que tive com a Fernanda, respigo um brevíssimo excerto:
«A ponte aérea fez-se para Angola, as pessoas em Moçambique foram deixadas à sua sorte, tiveram de fugir pelos seus meios, daí muitas terem ido para a África do Sul, porque era ao lado. [Mas] das coisas muito duras ninguém fala. Porque é despertar os demónios e reabrir as feridas. [Coisas como] os campos de reeducação para brancos que se fizeram em Moçambique, as pessoas que morreram, se suicidaram, ficaram doidas.»
Era aqui que eu queria chegar. E como essa realidade é desconhecida da maioria dos portugueses, vou citar uma passagem do meu livro de memórias:
«Graça Machel reconheceria mais tarde, quando era já senhora Mandela, que a intimidação dos portugueses tinha sido um acto deliberado para nos afastar de vez. Isso explica as prisões em massa efectuadas na noite de 30 de Outubro de 1975. Nesse dia, a partir das dez da noite, foram presas todas as pessoas não identificadas encontradas na rua, em transportes públicos, cinemas, cafés, bares, restaurantes e clubes nocturnos (e só na Rua Araújo havia meia dúzia). Eu fazia parte dos que não tinham consigo o bilhete de identidade. Fui preso junto ao Hotel Clube, o belo edifício de 1898 onde hoje funciona o Centro Cultural Francês. Ia a caminho de casa com o Jorge quando fui interpelado por uma patrulha. Levaram-me para o campo de treino de cães da polícia, perto do zoo, onde permaneci durante catorze horas. (E só esse tempo porque minha mãe bateu às portas certas.) Eu e milhares como eu. Por estar documentado, o Jorge foi deixado em paz. Avisou minha mãe e ambos passaram a noite a tentar resolver a situação. Enquanto estive sob custódia, pude observar a seguinte triagem: um indivíduo branco mandava separar os rapazes de cabelo comprido e as raparigas de saia curta. Não sei o que lhes aconteceu ou o que poderia ter-me acontecido. Era inútil contar com a protecção da Embaixada de Portugal. O primeiro embaixador português a seguir à independência era um indivíduo preocupado em agradar à Frelimo. [...] Desde 1963, ainda no tempo de Eduardo Mondlane, a Frelimo mantinha na Tanzânia os denominados campos de reeducação. Os mais conhecidos eram os de Nachingwea e Bagamoyo. No Niassa, em Moçambique, ficava o de Mitelela. Para esses campos foram enviados dezenas de milhares de indivíduos. Por esta ordem: negros, mestiços, brancos e indianos. A comunidade chinesa não foi incomodada. Dois terços dos detidos enlouqueceram, morreram de fome ou foram executados. O terço que sobrou ficou reduzido a zombies que mendigam pelas ruas de Maputo, Nampula e outras cidades. Vim a saber que um vizinho, um miúdo que não teria ainda 20 anos, foi abatido ao tentar fugir do campo onde estava. O pico das purgas deu-se entre 1975 e 1990, época em que o totalitarismo teve rédea solta e ninguém piou.» — cf pp 28-31 de Um Rapaz a Arder, memórias 1975-2001, Quetzal, 2013.
Se isto irrita o maralhal, paciência.