Hoje na Sábado escrevo sobre Onde Mora a Felicidade, da sinóloga americana Pearl S. Buck (1892-1973), Prémio Nobel da Literatura em 1938. Em boa hora reeditado, o romance tem como epicentro a vida na China, país onde a autora viveu durante quarenta anos. O recrudescer da Guerra Civil Chinesa fez com que regressasse aos Estados Unidos em 1935, sendo impedida de voltar mais tarde porque o regime de Mao Tsé-Tung nunca permitiu o regresso. Aos olhos de Pequim, Pearl S. Buck era uma “agente do Imperialismo americano”. Adaptado ao cinema como tantos dos seus livros, Onde Mora a Felicidade conta a história de uma mulher que desiste de fazer sexo com o marido. Invertendo os termos de uma proposição célebre de Simone de Beauvoir, Madame Wu concedeu a si própria, desse modo, a liberdade. A decisão é tomada no dia do seu quadragésimo aniversário, pondo termo a vinte e quatro anos de “deveres” conjugais. A partir daquele momento, orquestrará a seu bel-prazer o quotidiano e a casa (um núcleo de sessenta pessoas, entre familiares e servos), libertando de obrigações o homem que ao acordar na manhã seguinte ao casamento lhe dissera: «Se fosses feia... tinha-te matado a noite passada em cima da almofada. Odeio mulheres feias.» Agora chegou o momento de pensar nela, e apenas nela, sem descurar o principal: escolher uma concubina adequada para o marido, uma rapariga jovem, «macia como uma criança, afectivamente preparada para amar quem quer que seja e não apenas um homem...» Os trâmites do negócio são descritos com a secura de regra. Contudo, para surpresa sua, o Senhor Wu fará valer as suas idiossincrasias de parte interessada. Nenhum paternalismo macula a prosa de Pearl S. Buck. Pelo contrário. Foi mesmo a ausência de qualquer resquício colonial que singularizou a obra. Logo em 1931, Terra Abençoada, vencedor do Prémio Pulitzer de ficção, deu notícia de uma autora que falava da China com mais desenvoltura do que falaria da Virgínia Ocidental, onde nasceu. Não era comum. Sem dar por isso, o leitor mergulha nos hábitos e costumes de uma cultura milenar que para todos os efeitos nos é “estranha”. Sirva de exemplo a instituição que representa o casamento, «um dever não para com o amor nem para connosco, mas para com o nosso lugar nas gerações.» Um livro datado? E daí? Três estrelas e meia.
Escrevo ainda sobre Esta Distante Proximidade, colectânea de ensaios declaradamente autobiográficos da ensaísta americana Rebecca Solnit (n. 1961), até aqui inédita no nosso país. Activista política na área do ambiente e dos direitos humanos, voz audível contra as intervenções americanas no Médio Oriente, Rebecca Solnit sabe que é a partir do Eu que chegamos ao Outro. As duas primeiras frases dão o tom: «Qual é a nossa história? Tudo está no contar.» O leitor não deve deixar-se intimidar com a descrição do hipocampo (essa «pequena circunvolução na zona central do cérebro») ou aquilo que distingue os neocórtices animais dos humanos. O desabafo da autora é o de alguém que chegou à idade em que a degenerescência da mãe lhe caiu em cima. A doença e meia tonelada de damascos. São eles (os frutos) que servem de cimento aos treze textos do livro. Num ápice, estamos numa close reading de Mary Shelley ou no facto de Che Guevara usar dois Rolex. Nenhuma ligeireza de escrita. Pelo contrário. Convinha traduzir outras obras de Rebecca Solnit. Quatro estrelas. Publicou a Quetzal.