Hoje na Sábado escrevo sobre Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo (n. 1963), que em 2009 provocou um terramoto na vida literária portuguesa, tornando-se objecto de estudo em universidades estrangeiras. Porquê? Porque a autora introduziu um factor de perturbação no discurso dos colonos: «Os brancos iam às pretas. [...] A cona era larga. A das brancas não, era estreita, porque as brancas não eram umas cadelas fáceis, porque à cona sagrada das brancas só lá tinha chegado o do marido […] e convinha que umas soubessem isto das outras.» Pondo em pauta o indizível, Isabela foi diabolizada nas redes sociais. Cinco edições esgotadas (mais não houve por razões obscuras) tornaram imperativa a reedição que agora chega às livrarias com dois prefácios inéditos: um de Paulina Chiziane, escritora moçambicana; outro de José Gil, filósofo português nascido em Moçambique. Relações de género, colonialismo, ajuste de contas com o pai (a Frelimo manteve-o preso durante anos), aquele que fazia o trabalho sujo da «aristocracia das colónias», como chama José Gil à boa burguesia de Lourenço Marques. A autora faz o retrato de um homem no contexto do seu tempo. É notável havê-lo feito com tamanha exactidão e uma escrita de primeiríssima água, sem medo das palavras, ignorando a sua condição de mulher branca. Cinco estrelas.
Escrevo ainda sobre O País Fantasma, de Vasco Luís Curado (n. 1971), autor de quatro obras de ficção que a imprensa cultural em devido tempo assinalou. Sejamos claros: nunca até hoje, em Portugal, se escreveu sobre Angola como neste romance. Curado cerziu ficção e reportagem, mais esta do que aquela, para nos contar a História de Angola no período entre 1961 e 1975. Dito de outro modo: ao contrário do que têm feito vários autores centrados na denominada Batalha de Luanda (casos de Dulce Maria Cardoso e Tiago Rebelo), Curado recua aos massacres da UPA na Baixa do Cassange, em 15 e 16 de Março de 1961. É nesse exacto momento que começa a tomar forma O País Fantasma. A frase célebre de Salazar, “Para Angola, rapidamente e em força!”, proferida um mês depois da matança, deu azo a um intervalo de sossego e prosperidade económica, mas a débâcle era irreversível. Curado fixa com minúcia a sua progressão. Os oito capítulos (mais um Epílogo) em que o livro se divide fazem o relato brutal da tragédia: «Mulheres com os seios cortados, meninas de dez anos despidas, violadas e esventradas, bebés esquartejados dentro de alcofas; a um deles faltavam os pés e as mãos, talvez levados como troféus.» O outro lado também: negros enterrados vivos, etc. Dezenas de páginas que não deixam pedra sobre pedra. Curado não isenta ninguém. Nem colonos, nem militares, nem partidos angolanos. O foco é a Gabela, epicentro do cultivo e exportação de café, e, no auge da borrasca, Nova Lisboa (actual Huambo), cujo estertor é descrito de forma exemplar. Nada a ver com a crónica luandense de 1975, tema que o polaco Ryszard Kapuscinski tratou de forma definitiva em Mais um dia de vida. A quota ficcional fica por conta de Capelo, alferes do exército português com parte activa na defesa dos colonos radicados no Uíge (acabada a comissão de serviço, permanece na Colónia e torna-se, pelo casamento, um próspero fazendeiro); e de um funcionário da administração colonial, Mateus, protótipo do “retornado”. Narrador do capítulo Lisboa 1975, faz um tour d’horizon à chegada dos expatriados: esquemas, trambiques, equívocos, nonsense (obrigação de provar o direito à nacionalidade portuguesa), cerco ao Banco de Angola para que o escudo angolano fosse equiparado ao escudo português, manifestações no Rossio, hostilidade dos partidos de extrema-esquerda, etc. Tudo isso que fez a lenda dos “retornados” de Angola chegou agora à Literatura. Publicou a Dom Quixote. Quatro estrelas.