quinta-feira, 16 de julho de 2015

MARTIN AMIS

 
Hoje na Sábado escrevo sobre A Zona de Interesse, o mais recente romance de Martin Amis (n. 1949), com acção localizada em Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial. Dividido em seis capítulos (cada um com três secções) e um Rescaldo, epílogo que faz o balanço do genocídio por intermédio da memória de três mulheres. O volume fecha com um posfácio do autor: «Com muita cautela, proponho que parte do carácter excepcional do Terceiro Reich reside na sua inflexibilidade...» Mais do que um posfácio comum, trata-se de facto de um ensaio sobre a irracionalidade da Solução Final. Embora seja um romance, Amis indexa todas as fontes que corroboram o plot. Sem surpresa, Primo Levi é citado com a devida extensão. De certo modo, este livro é um ajuste de contas com o nazismo e a doença mental que representa «a fobia aos judeus», não obstante um leitor menos interessado em História, ou simplesmente mais distraído, poder apenas entreter-se com o triângulo formado, a partir de 1942, por Thomsen, Hannah e Paul. Thomsen, um jovem oficial em serviço no Konzentrationslager, é sobrinho de Martin Bormann, o influente secretário pessoal de Hitler. Hannah é casada com Paul, «o velho beberrão», comandante do campo e seu marido desde 1928. Urdida com a tradicional destreza, a trama romanesca serve de pretexto para tentar compreender Auschwitz e, por extensão, a guerra em si mesma. Porquê? Porquê a «grotesca assiduidade do ódio alemão [...] porque é que nos tatuaram um número, para a viagem rumo à nossa própria destruição?» A Zona de Interesse é talvez o romance mais comprometido de Amis, e seguramente o mais conseguido, o que não deixa de ser relevante se pensarmos que O Segundo Avião (2008), não sendo uma narrativa de circunstância, reporta ao 11 de Setembro, tema familiar à maioria dos leitores. Tal como há sete anos, também agora nenhuma linha se afasta da realidade, ilustrada por factos documentados. Dir-se-ia que a quota ficcional é um pretexto para contar o indizível. A diferença é que o livro sobre o ataque às Torres Gémeas é uma obra de não-ficção (ainda que inclua um perfil ficcionado de Muhammad Atta), enquanto A Zona de Interesse é um romance clássico no mais amplo sentido do termo. Pode-se dizer que Amis dribla os que até aqui o acusavam de vénia ao ar do tempo. Desta feita, o passado regressa sob a forma de um murro no estômago. Cinco estrelas.

Escrevo ainda sobre O Sonho Português, de Paulo Castilho (n. 1944), romance que faz grande angular sobre a realidade portuguesa actual: «Os estrangeiros têm o Louvre, o Museu Britânico, os Uffizi, nós temos a Rua cor-de rosa.» Reflexões desta natureza, e outras mais ácidas, pontuam o livro. Castilho não cabe em nenhum dos itens que excitam os publicistas: melancolia francesa e pompa retórica. Na melhor tradição anglo-saxónica, a obra caracteriza-se pela coloratura adequada, sem artifícios de feira. O registo crítico provoca atrito, mas esse é o ónus do estrangeirado: «Vamos propor a bebedeira de Lisboa para património imaterial da Humanidade...» Premonitório! Narrado em jeito de diário (a cada capítulo corresponde uma data), abre com a árvore genealógica dos principais protagonistas. Classes médias, umas mais altas do que outras, corredores do Poder, origem descamisada dos membros do Governo: pais e avós desbarretados, enxada na mão, muito respeitinho pelos senhores, «os netos padecem de humilhação retroactiva e agora vingam-se.» Editou a Dom Quixote. Quatro estrelas.