sábado, 23 de março de 2019

CICLONE IDAI


Parece que os portugueses residentes na Beira estão descontentes com os serviços consulares. Conhecendo os caminhos ínvios da burocracia nacional, não me custa admitir que muita coisa funcione menos bem ou mesmo mal.

Mas no caso concreto da tragédia que assola a província de Sofala e, por extensão, a cidade da Beira, não percebo a ira dos portugueses ali residentes. Salvo se quiserem ser imediatamente repatriados para Portugal (ou deslocados para Maputo). Se for esse o caso, a coisa resolve-se por coordenação entre o MNE, a embaixada de Portugal em Maputo e o Consulado na Beira.

Mais do que isso, não vejo como. A ajuda humanitária (alimentação, água potável, medicamentos) não pode privilegiar duas mil pessoas em detrimento do meio milhão que vive ao lado, ou dos dois milhões de habitantes do território moçambicano alagado, uma área equivalente a mais de metade de Portugal.

Como é que uma repartição consular tem condições para repor infraestruturas (as estradas desapareceram debaixo de seis metros de água, pontes aluíram, não há electricidade, a rede de comunicações móveis colapsou, o hospital da Beira ficou inundado) que o próprio Estado moçambicano se mostra incapaz de repor?

40 ANOS?


Michel Temer foi preso sob várias acusações, entre elas a de, nos últimos 40 anos, ter liderado uma associação criminosa com base no Rio de Janeiro. Últimos 40 anos significa desde 1979.

O juiz Marcelo Bretas, titular da 7.ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, descobriu isso esta semana? Olha que precisão. Terá ido à bruxa?

É que, entre outros cargos de topo (como presidente da Câmara de Deputados, deputado federal, procurador-geral de São Paulo, etc.), Temer foi vice-Presidente do Brasil entre 2011 e 2016, liderou com sucesso o processo de impeachment de Dilma, ocupando o seu lugar entre 2016 e 2019.

E mesmo sabendo que liderou, nos últimos 40 anos, uma associação criminosa, deixaram-no ficar no Planalto?

A frase é um clichê, mas vem a propósito: o Brasil não é para principiantes.

sexta-feira, 22 de março de 2019

IRLANDA & BREXIT

A RTP transmitiu ontem uma reportagem muito oportuna sobre as previsíveis consequências do Brexit na Irlanda do Norte, ou seja, nos condados que fazem parte do Reino Unido mas mantêm fronteira aberta com a República da Irlanda.

Depois de trinta anos (1968-98) de conflito sangrento, ninguém quer voltar ao passado. Só depois do Good Friday Agreement, assinado a 10 de Abril de 1998, é que a situação normalizou. Duas gerações nasceram depois do fim da guerrilha entre os separatistas e Londres. Mas os católicos continuam a querer juntar-se à República, enquanto os anglicanos permanecem fiéis a Sua Majestade. Tudo isto é de meridiana clareza.

Portanto, não se percebe a insistência na aprovação do Acordo entre a UE e o Reino Unido.

O Acordo protege a economia europeia, é verdade. Mas há muito que a economia passou a ser sinónimo de interesses financeiros globais de meia dúzia de grandes bancos e fundos soberanos, para os quais as pessoas comuns são números.

O não-Acordo, ou hard Brexit, vai com certeza causar empecilhos no imediato, mas tem a enorme vantagem de impedir o regresso dos velhos fantasmas da guerrilha urbana.

quinta-feira, 21 de março de 2019

A BEM OU A MAL


Theresa May aceitou as novas datas propostas por Bruxelas para o Brexit.

Se o Acordo for aprovado numa terceira votação, o Reino Unido pode sair a 22 de Maio (embora a França preferisse 7 de Maio).

Se for novamente chumbado, 12 de Abril é a data limite.

O tuíte de Tusk é claro. Clique.

TEMER PRESO


Michel Temer, ex-Presidente do Brasil, foi preso esta manhã em São Paulo, ao sair de casa.

Também foram presos: Moreira Franco, ex-ministro; João Batista Lima Filho, coronel da Polícia Militar e amigo íntimo de Temer; Maria Rita Fratezi, arquitecta e mulher do coronel; Othon Luiz Pinheiro, ex-presidente da Eletronuclear; e Carlos Alberto Costa, sócio de Temer.

São todos acusados de corrupção e formação de cartel no âmbito da Operação Lava Jato.

Imagem: manchete do jornal Estado de São Paulo. Clique.

MACRON & BREXIT


O Presidente francês estaria disposto a aprovar uma extensão do Brexit até 22 de Maio. Uma data posterior contará com o veto da França. Macron foi claro: Estamos prontos para uma saída sem acordo.

Entretanto, Donald Tusk já esteve hoje reunido com Theresa May. E voltou a insistir na aprovação do acordo.

Clique no tuíte de Tusk.

LUIZA


Hoje, Dia Mundial da Poesia, quero lembrar Luiza Neto Jorge (1939-1989), mulher e poeta maior, sem salões, sem genealogia no Gotha, mas senhora de Obra ímpar.

O POEMA ENSINA A CAIR

O poema ensina a cair 
sobre os vários solos 
desde perder o chão repentino sob os pés 
como se perde os sentidos numa 
queda de amor, ao encontro 
do cabo onde a terra abate e 
a fecunda ausência excede 

até à queda vinda 
da lenta volúpia de cair, 
quando a face atinge o solo 
numa curva delgada subtil 
uma vénia a ninguém de especial 
ou especialmente a nós uma homenagem 
póstuma

[in O Seu a Seu Tempo, 1966]

NOVE LIVROS


Hoje na Sábado.

Com as livrarias entupidas, há que fazer contas e escolhas. Escolhi nove títulos: obras de Edward St Aubyn, Natalia Ginzburg, Artur Domoslawski, Alice Brito, Fernando Assis Pacheco, Marianne Moore, Lucia Berlin, Nuno Júdice e António Sousa Homem.

Edward St Aubyn (n. 1960), o romancista inglês mais fulgurante da sua geração, faz com Dunbar e as suas filhas a versão contemporânea dessa tragédia familiar que é o Lear de Shakespeare. Depois do quinteto Melrose parecia impossível manter a fasquia, mas St Aubyn chega lá. Henry Dunbar, CEO absoluto de uma multinacional de comunicação (alegoria de Murdoch?), enclausurado pela família numa residência sénior para bilionários, atolado em psicofármacos, consegue fugir, mas não recupera o poder global. Como sempre, St Aubyn é virtuoso na forma como descreve as personagens, os estados de espírito e as planícies geladas do Lake District. Notável. Cinco estrelas. Publicou a Bertrand.

A italiana Natalia Ginzburg (1916-1991), que andava desaparecida das livrarias portuguesas, regressa com Léxico Familiar, obra-chave desta autora que quis que lêssemos a história da sua família como um romance. O livro acompanha os anos da ascensão do fascismo italiano, as leis raciais de Mussolini e a Segunda Guerra Mundial. Os Levi são judeus, Natalia é a mais nova de cinco irmãos. Por sua casa, em Turim, passaram os amigos, intelectuais e poetas, entre eles Pavese. A escrita seca recupera os fulgores da adolescência, as ignomínias da guerra, os combates ideológicos, as dúvidas (América ou Palestina?), em suma, a vida como ela foi. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Um dos jornalistas mais célebres do século XX  foi o polaco Ryszard Kapuscinski (1932-2007), autor de livros que foram bestsellers planetários. Mas, como demonstrado na biografia escrita por Artur Domoslawski — Kapuscinski. Uma Vida —, o seu percurso está cheio de zonas de sombra. Domoslawski entrevistou a viúva, que tentou evitar a publicação do livro, incomodada com os detalhes sobre a vida privada de ambos (os casos extra-conjugais) e o facto de Kapuscinski ter sido agente activo dos serviços secretos polacos. A grande surpresa surge com a revelação de que muitos ‘factos’ eram efabulados: as amizades com Che Guevara, Allende e Lumumba; a presença na Praça de Tlatelolco, na Cidade do México, durante o massacre de 1968; a história de como o pai ‘escapou’ ao massacre de Katyn, etc. Kapuscinski defendia-se argumentando com a liberdade do jornalismo literário…  Quatro estrelas. Publicou a Assírio & Alvim.

Todos sabemos que Alice Brito (n. 1954) é uma escritora comprometida com a denúncia do tempo ominoso do fascismo: «Mas será que tem que se escrever […] sobre esta porra de existência que nos aconteceu?» Advogada, feminista e activista política, a nitidez da voz autoral traz com ela a vantagem suplementar da oralidade bem calibrada. A Noite Passada dá testemunho do país acabrunhado dos anos 1950-70, a queda do Estado Novo, os “desacertos” de Setúbal, cidade-palco do romance e, por fim, a ressaca  do 25 de Novembro de 1975. Alice Brito é muito hábil na forma como manipula o fluxo da consciência, encadeando factos reais ou imaginados: subalternidade das mulheres, gravidez fora do casamento, violência, delação, miséria, ignomínia da polícia política, guerra, traição. Quatro estrelas. Publicou a Planeta.

Nunca é de mais sublinhar a importância de Fernando Assis Pacheco (1937-1995) no contexto da poesia portuguesa do século XX. Mantendo o título original, A Musa Irregular, a edição aumentada da sua obra poética, organizada por Abel Barros Baptista, colige os dez livros publicados em vida, o Lote de Salvados que fechava o volume de 1991, o livro póstumo Respiração Assistida, apenas publicado em 2003, bem como um Suplemento ao Lote de Salvados, secção que inclui dez poemas-colagem, mas também inéditos e dispersos. Subsumindo o melhor da tradição, Assis Pacheco fez a síntese do classicismo com o modernismo, a declinação surrealista, o discurso fescenino, formas versificatórias próximas da cantiga popular e, formando um núcleo de grande exigência, os poemas da guerra colonial. Manuel Gusmão assina o posfácio. Cinco estrelas. Publicou a Tinta da China.

Graças a Rui Knopfli, descobri Marianne Moore (1887-1972) há perto de cinquenta anos. Agora, Margarida Vale de Gato acrescentou O Pangolim e Outros Poemas à língua portuguesa. Antologia bilingue, a tradutora ilumina a poesia daquela que considera ser «a mais persistente e porventura mais notável voz feminina» do modernismo americano. O gosto pelas aulas de biologia e histologia reflectiu-se no universo imagético, fundindo realidades díspares. Por exemplo, ornitologia, baseball e crustáceos: «caranguejos como lírios / verdes e submarinos / fungos, roçam como juncos.» A consagração chegou em 1951, quando Collected Poems recebeu os três prémios literários de maior prestígio nos Estados Unidos: o Pulitzer, o Bollingen e o National Book Award. Imprescindível. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d'Água.

No texto que serve de prefácio à coletânea de contos Anoitecer no paraíso, Mark Berlin explica o que foi a vida da mãe, Lucia Berlin (1936-2004), outsider dos círculos institucionais da comunidade literária americana até à publicação do livro póstumo Manual para Mulheres de Limpeza, publicado onze anos após a sua morte. A vida (alcoolismo, toxicodependência, nomadismo) explica a obra, e é desse magma, mais tarde agravado pela doença, que Lucia extrai histórias prodigiosas, como são, entre outras, “Por vezes, no Verão”, “Anoitecer no paraíso”, “As esposas” ou “Pony Bar, Oakland”. Quatro estrelas. Publicou a Alfaguara.

Autor de uma obra extensa e poeta consagrado, Nuno Júdice (n. 1949) continua a publicar ficção, género em que O Café de Lenine é o título mais recente. Trata-se de uma novela que, a partir de clássicos da literatura universal, põe em pauta o presente. Sirvam de exemplo Madame Bovary, de Flaubert, e A Cartuxa de Parma, de Stendhal. Um divertissement culto com ecos do imaginário “surrealista”, forma enviesada de classificar uma narrativa suportada em personagens e factos concretos, directa ou indirectamente citados, tais como Lenine, Camões, Eça, Dante, Lispector, a Primeira República, o rendimento social de inserção, o ofício de escritor e outras derivas. Não é para qualquer um, mas Júdice consegue. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.

António Sousa Homem, heterónimo de um conhecido escritor, deu à estampa mais uma compilação das suas crónicas — O Crepúsculo em Moledo. Acabado de sair dos prelos, com prefácio de João Pereira Coutinho, constitui a quarta colectânea de crónicas deste “reaccionário minhoto”, guardião dos pergaminhos de Moledo, advogado e botânico, porventura o derradeiro miguelista. Numa prosa irrepreensível, Sousa Homem ilustra o presente à luz da tradição histórica: «A verdade é que nunca fomos liberais. Temos um problema grave com o dicionárioQuatro estrelas. Publicou a Porto Editora.

Clique na imagem.

quarta-feira, 20 de março de 2019

TUSK ENCOSTA LONDRES À PAREDE


Theresa May escreveu a Donald Tusk solicitando um curto adiamento do Brexit. Em vez de 29 de Março, seria 30 de Junho.

Em resposta, o presidente do Conselho Europeu considera que, embora crie uma série de questões de natureza legal e política, a prorrogação curta seria de considerar se os Comuns aprovarem o acordo estabelecido com a UE. Se os Comuns aprovarem o Acordo rejeitado duas vezes...

Excerto da carta de Tusk: «In the light of the consultations that I have been conducting over the past days, I believe that we could consider a short extension conditional on a positive vote on the withdrawal agreement in the House of Commons. The question remains open as to the duration of such an extension. Prime Minister May’s proposal, of the 30th of June, which has its merits, creates a series of questions of a legal and political nature. We will discuss it in detail tomorrow. When it comes to the approval of the Strasbourg agreement, I believe that this is possible, and in my view it does not create risks. Especially if it were to help the ratification process in the UK

A prorrogação teria de ser aprovada por unanimidade. Mas, além da Itália e da Polónia, também a França, Espanha e a Bélgica fizeram hoje saber que se opõem ao adiamento do Brexit.

Face ao ultimato (não se pode chamar outra coisa à posição, a meu ver correcta, de Tusk), John Bercow, que tinha proibido uma terceira votação do mesmo diploma, acedeu a que ela se faça, com carácter de urgência, ainda hoje. Já começou.

Theresa May ainda não chegou a Westminster e fala ao país às 20 horas.

Adivinha-se uma noite longa nos Comuns.

Clique na imagem do Guardian.

TORGA EM ESPANHOL


A Editorial da Extremadura, de Cáceres, tem uma colecção de autores de língua portuguesa. Chama-se Letras Portuguesas e, entre outros, inclui títulos de Eduardo Lourenço, José Gil, António Lobo Antunes, Nuno Júdice, Fernando Pinto do Amaral, Rosa Maria Martelo, bem como uma antologia da minha poesia, Y Si Todo de Repente? (2011), traduzida por Antonio Saez Delgado.

Chegou a vez de Miguel Torga. Amador Palacios, que foi o meu primeiro tradutor em Espanha, e já traduziu, entre outros, Cesário, Pessanha e Al Berto, deu agora à estampa um volume de 64 poemas: os 46 que surgem no primeiro volume do Diário acrescidos das 18 odes do terceiro volume. A uma primeira leitura, as traduções estão à altura do autor de Criação do Mundo.

Los primeros poemas del Diário / Odas foi ontem lançado no Instituto Cervantes de Lisboa, com apresentação de Javier Rioyo e Francisco Javier Amaya. Amador Palacios também falou, e leu alguns poemas. No fim, Teresa Rita Lopes, que estava presente, contou uma experiência sua relacionada com as idiossincrasias de Torga.

Clique na imagem.

segunda-feira, 18 de março de 2019

BEIRA DESTRUÍDA


Estive a ver imagens da cidade da Beira após a passagem do Idai, o ciclone que atravessou o Malawi, o Zimbabwe (antiga Rodésia do Sul) e a província de Sofala, no centro de Moçambique.

Na Beira, que actualmente tem meio milhão de habitantes, e ficou com 90% da área urbanizada destruída, residem cerca de dois mil portugueses. No centro, o número de mortos é de cerca de cem, mas nas periferias e no conjunto da província de Sofala serão aos milhares, estando mais de cem mil pessoas em risco de vida. Por estarem submersas, dezenas de aldeias desapareceram do mapa, pontes e estradas abateram com a força das chuvas e da água dos rios, em especial o Púngué.

No conjunto dos três países atingidos pelo Idai, o número de vítimas é superior a um milhão e meio.

Uma tragédia.

Clique na imagem.

AXIMAGE


Sondagem Aximage divulgada hoje no Correio da Manhã e no Negócios.

Maioria de Esquerda = 52,3%. Sozinho, o PS ultrapassa o PSD em 12,4%. E a PAF (PSD+CDS) em 2,7%. Com 9,7% o CDS volta a ser o terceiro partido. O PAN obtém 2,2% e a ALIANÇA (Santana) 1,8%.

Imagem: Negócios. Clique.

domingo, 17 de março de 2019

O MISTÉRIO


Existe um mistério em Portugal, acentuado pelo descaso do Estado, a abulia dos trabalhadores e a indiferença dos media, para quem a questão é um não-assunto.

Como sobrevivem os reformados da Segurança Social entre o momento em que, por vontade própria ou imposição da Lei, entram na situação de reforma, e o momento em que começam a receber a pensão a que têm direito?

A pergunta não é retórica. E também se aplica aos que, por morte do cônjuge, têm direito a pensão de sobrevivência.

Neste momento, o intervalo é de um ano. UM ANO. Como é que, durante doze meses, sobrevive o trabalhador na situação de reforma sem pensão atribuída? Ou o cônjuge sobrevivo?

Como é que essas pessoas honram os encargos com a habitação, com os fornecedores de água, electricidade e gás, com os operadores de comunicações fixas, móveis e de internet, com o Serviço Nacional de Saúde (as taxas moderadoras não foram abolidas, as consultas não são gratuitas), com o uso de medicina privada, com a farmácia, com os seguros obrigatórios, com as despesas dos ascendentes a cargo, com a Autoridade Fiscal, com a alimentação? Como? Alguém me consegue explicar?

A bengada do cônjuge que continua no activo, ou já tem pensão atribuída, não serve de argumento. E quem não tem cônjuge?

Verdade que o pagamento dos retroactivos está garantido, mas isso não resolve a questão.

Um grande mistério. 

Algumas grandes empresas (muito poucas) têm fundos de reforma. Continuam a pagar aos trabalhadores como se estivessem no activo, efectuando o acerto no momento em que a Segurança Social liberta a pensão. Mas isso não acontece em 99% do mundo laboral.

Como é, então? Como é que esta situação ainda não provocou tumulto geral?

FREI LUÍS DE SOUSA


Acontece com o Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, epítome do drama romântico, o mesmo que acontece com os Lusíadas, poema épico por excelência. Décadas de leituras enviesadas erigiram uma barragem de anticorpos.

Quem teve de aturar professores tacanhos, tal como quem viu o filme que António Lopes Ribeiro fez em 1950 (vi muito mais tarde na televisão), jurou não voltar a ver a peça que põe em pauta o casamento “ilegítimo” de D. Manuel de Sousa Coutinho, capitão-mor de Almada, com D. Madalena de Vilhena, alegada “viúva” de D. João de Portugal. Tudo se passa no fim do século XVI, quando, por força da crise dinástica, Filipe II de Espanha era rei de Portugal,

Almeida Garrett escreveu Frei Luís de Sousa em 1843, após a morte de Adelaide Pastor, com quem viveu entre 1835 e 1839, embora continuasse casado com Luísa Cândida da Silva Midosi. Garrett e Adelaide, falecida com 21 anos, tiveram uma filha tão problemática como a Maria da peça. A vida de D. Manuel de Sousa Coutinho, mais tarde Frei Luís de Sousa, autor canónico do século XVII, serviu de pretexto para recriar o drama pessoal do autor.

Isto pode ter muitas leituras. Miguel Loureiro fez a dele numa encenação brilhante, enriquecida pelo trabalho de luz de José Álvaro Correia, a cenografia de André Guedes, os figurinos de José António Tenente e, last but not least, as interpretações de Álvaro Correia, Ângelo Torres (um Telmo inesperado e magnífico), Carolina Amaral, Gustavo Salvador Rebelo, João Grosso, Maria Duarte, Rita Rocha, Sílvio Vieira e Tónan Quito. Gonçalo Ferreira de Almeida é o assistente de encenação. A música que encerra os actos não podia ter sido melhor escolhida.

Vi as versões de Ricardo Pais (1979) e de Carlos Avillez (1999), mas não gostei absolutamente nada da primeira (um patchwork de Garrett, Alexandre O'Neill e Maria Velho da Costa), nem me entusiasmei com a segunda. As que foram feitas nos últimos vinte anos não vi.

Miguel Loureiro reconciliou-me com o texto, belíssimo, mas só agora — a dicção dos actores é decisiva — isso me foi evidente. A clareza do texto é o princípio de tudo e talvez seja por isso que este Frei Luís de Sousa nos interpela.

Parabéns a toda a equipa e ao Miguel Loureiro em particular.

A foto é de Filipe Ferreira. Clique.