domingo, 11 de novembro de 2018

TOURADAS


Excertos da carta do primeiro-ministro António Costa a Manuel Alegre, hoje publicada no Público:

«[...] Prefiro pensar que as civilizações também se distinguem pela forma como tratam os animais. Como se distinguem pela forma como valorizam a dignidade do ser humano, a natureza, ou se relacionam com o transcendente, por exemplo. [...]

Por isso, afirmar que uma certa opção é uma questão de civilização não significa desqualificar o oponente como incivilizado. O diálogo de civilizações exige respeito mútuo, tolerância e a defesa da liberdade. [...]

Por isso, não me receie como “mata-toureiros”, qual versão contemporânea de “mata-frades”. Prefiro conceder a cada município a liberdade de permitir ou não a realização de touradas no seu território à sua pura e simples proibição legal e considero extemporâneo um referendo sobre a matéria. Choca-me que o serviço público de televisão transmita touradas. Mas não me ocorre proibir a sua transmissão. Contudo, reclamo também a minha própria liberdade e defendo a liberdade de quem milita contra a permissão das touradas. [...]

A causa da promoção do bem-estar animal é absolutamente legítima e tem tido, felizmente, progressiva expressão legal, a mais relevante das quais a recente alteração do Código Civil, que deixou de considerar os animais como “coisas”. Ou a limitação à utilização de animais em espectáculos de circo. Como homem da Liberdade tem também de respeitar os cidadãos que, como eu, rejeitam a tourada como manifestação pública de uma cultura de violência ou de desfrute do sofrimento animal. [...]

Bem sei que o novo politicamente correcto é ser politicamente “incorrecto”... Mas então prefiro manter a tradição e defender o que acho certo, no respeito pela liberdade dos outros defenderem e praticarem o contrário. [...]»

Elementar. Eu não diria melhor.

A PRIMEIRA GRANDE GUERRA


Ouve-se dizer com frequência que a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial foi um acto simbólico, uma birra de Afonso Costa. Convém lembrar que Portugal mandou 50 mil homens para França e 30 mil para Angola e Moçambique, colónias que faziam fronteira com a Namíbia e a Tanzânia, à época colónias alemãs. Submarinos alemães atacaram a Madeira, os Açores e Cabo Verde. A opinião pública retém o desastre de La Lys, em Abril de 1918, batalha onde morreram 400 portugueses e 7 mil foram feitos prisioneiros. Mas, para o Corpo Expedicionário Português, a Primeira Guerra Mundial não se resumiu a La Lys. Passaram cem anos. As gerações mais jovens olham para tudo isto (as que olham) como eu olho para Assurbanípal. Pode ser-lhes fatal.

Clique na imagem.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

JON McGREGOR


Hoje na Sábado escrevo sobre Reservatório 13, do britânico Jon McGregor (n. 1976), autor que despertou a atenção da crítica com o seu primeiro romance, rapidamente traduzido entre nós. Tinha então 25 anos. O mais recente chegou agora às livrarias. Confirma os dotes do autor, várias vezes premiado, incensado por pares ilustres. Reservatório 13 parece um thriller em ambiente rural pós-moderno. No centro da intriga, o desaparecimento de uma adolescente, Rebecca Shaw, numa aldeia perto de Manchester. Os treze capítulos do livro sinalizam os anos de busca. Com excepção do primeiro, começam todos com a mesma frase: À meia-noite, na passagem de ano… O dia fatídico permanecerá um mistério. O foco não é tanto a rapariga, que pode ter partido por vontade própria, mas o microcosmo local. Rapidamente esquecemos Rebecca. O romance é sobre as pessoas da terra (solidão, aspirações, sexo voraz, intrigas), os colegas de escola, o quotidiano do Centro Comunitário, a equipa de críquete. McGregor é muito hábil na forma como monta o patchwork. Mas por que será que é sempre uma rapariga a desaparecer? Três estrelas. Publicou a Elsinore.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

BRANCO É, GALINHA O PÕE

Não toleraremos que se repita o uso das Forças Armadas por interesses pessoais ou de grupo e jogos de poder... — disse o Presidente da República no discurso que ontem fez na Avenida da Liberdade.

O recado vai em linha recta para os promotores da Comissão Parlamentar de Inquérito ao Caso de Tancos, que pretende, por essa via, envolver o Governo e a Presidência da República.

Pode ser que me engane, mas os deputados (interessados em saber quem sabia do encobrimento que afinal não houve, porém desinteressados do alegado roubo) vão ficar a falar sozinhos.

sábado, 3 de novembro de 2018

TOURADAS OUT


Obviamente.

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

ABATER, DIZ ELE

Wilson Witzel, 50 anos, membro do Partido Social Cristão, juiz demissionário, novo governador do Rio de Janeiro (eleito com 59,9% dos votos), mandatou as delegacias de polícia para formarem grupos de atiradores — os chamados ‘atiradores designados’ — que terão como função abater criminosos armados.

Flávio Pacca, o principal conselheiro de Witzel, deu uma entrevista em que explica: «O criminoso com fuzil não precisa ter ninguém na mira de uma arma para ser abatido. Quando qualifico o policial eu protejo a comunidade

Por seu turno, entrevistado anteontem pela GloboNews, no programa Estúdio 1, o governador Witzel sublinhou: «Até de helicópteros, quem esteja numa favela portando um fuzil. A aeronave ajuda e preserva vidas nas favelas. Dos moradores e dos policiais. Os traficantes ocupam o tecto das casas e tentam tirar proveito disso. Se temos atiradores preparados podemos inibir ataques às pessoas. A única pessoa que tem que ter medo é o criminoso e não a sociedade

Isto parece uma anedota de mau gosto. Infelizmente, não é.

MORO DUBLÊ DE BERIA


A escolha de Sérgio Moro para ministro da Justiça e da Segurança Pública só espanta quem vive na lua. O juiz da Operação Lava Jato participou sem pudor nas eleições brasileiras a partir do momento em que mandou prender Lula, o homem que liderava todas as sondagens para Presidente.

Bolsonaro quer apenas 15 ministérios (em vez dos 39 de Dilma) e tem estado a fundir vários. Face à nova orgânica — Justiça e Segurança Pública —, Moro vai, além da Justiça, tutelar também a Secretaria Nacional de Segurança Pública, a Força Nacional, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Departamento Penitenciário, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, a Controladoria Geral da União, a Comissão de Amnistia, a Fundação Nacional do Índio, bem como os organismos responsáveis pela lavagem de dinheiro e fuga de capitais.

Quem aplaudiu a medida e a escolha do titular? Acertou: Fernando Henrique Cardoso.

Desde Beria (URSS) que não se via tamanha concentração de poder num único homem. Comentários para quê?

Clique na imagem do jornal brasileiro Globo.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

CABRAL & MORRIS


Hoje na Sábado escrevo sobre Pão de Açúcar, de Afonso Reis Cabral (n. 1990). A partir do brutal assassinato de Gisberta Salce Junior, transexual brasileira, o autor escreveu este romance não-ficcional. Quem leu A Sangue Frio, de Truman Capote, identifica o género. Factos: em Fevereiro de 2006, Gisberta, 45 anos, foi encontrada morta no poço alagado de um prédio inacabado da cidade do Porto, conhecido como Pão de Açúcar. Durante três dias, fora repetidamente violada e espancada por catorze rapazes, onze deles sob tutela da Oficina de São José, instituição católica vocacionada para o acolhimento de menores. Apenas um deles era maior de 16 anos. Gisberta foi atirada semi-nua para o poço, na presunção de que não resistira à tortura: pancada, queimaduras de cigarro, penetração com paus de madeira. A autópsia demonstrou que estava viva no momento da queda. Gisberta tinha sida, era toxicodependente, prostituta e sem-abrigo. Montou a sua barraca naquele andar vazio do Pão de Açúcar. Um dos rapazes é filho de uma prostituta que contratara como ama-seca uma mulher amiga de Gisberta. Em Setembro de 2007 todos estavam em liberdade. O caso chocou a opinião pública, mobilizou a comunidade LGBTI e deu origem a manifestações culturais (um documentário, duas peças de teatro, um poema notável de Alberto Pimenta, uma balada de Pedro Abrunhosa também interpretada por Maria Bethânia, vários textos de análise) que têm o seu corolário no romance de Afonso Reis Cabral agora publicado. Ficcionando a persona de Gisberta, foi com este material que o autor lidou. A narrativa centra-se no quotidiano dos rapazes (os da Oficina de São José e os outros três), tentando explicar o caldo de cultura que propiciou a barbárie. A deriva “literária” rouba força ao discurso. Diz o narrador: «Assim em repouso, bateu-me uma falta de ar que era tanto tristeza como excesso de amizade e muita falta de carinho.» O romance é antecedido de uma Nota Antes e fecha com uma Nota Depois. O autor deixa claro que está a lidar com factos verídicos alvo de cobertura mediática. É uma espécie de Balada dos Catorze, bem intencionada e naïve. Três estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Escrevo ainda sobre Manhattan’45, de Jan Morris (n. 1926). Vários livros da autora têm sido traduzidos entre nós, sendo este o mais recente. Não se trata de um livro de viagens: é um livro sobre como era Manhattam em 1945, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Cada um dos sete capítulos tem secções autónomas sobre temas específicos: os transeuntes da Midtown, a fina flor, judeus, celebridades, as ruas, vida ao ar livre, tradições, etc., breves ensaios de recorte sociológico sobre a Nova Iorque de 1945, nas circunstâncias próprias do Armistício. O livro é de 1987, mas esta edição inclui a introdução de 2011. Seja como for, a escrita de Morris é de tal modo envolvente que nos esquecemos do facto central: aquela cidade já não existe. Um exemplo: a Ópera (o Met) não funciona desde 1966 na morada indicada. Uma nota de rodapé sinaliza o detalhe en passant, mas a minuciosa descrição dos programas operáticos e dos seus frequentadores reporta a 1945. Numa escrita de primeiríssima água, Morris doseia cultura, informação, humor, história, memória e idiossincrasias pessoais. Cinco estrelas. Publicou a Tinta da China.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

POESIA


Chegaram hoje da tipografia os primeiros exemplares. Deu-me muito prazer organizar em volume único toda a poesia de António Botto (1897-1959), publicada entre 1921 e 1959. 

São 22 livros: os quinze que compõem Canções — Adolescente / Curiosidades Estéticas / Piquenas Esculturas / Olimpíadas / Dandismo / Ciúme / Baionetas da Morte / Piquenas Canções de Cabaret / Intervalo / Aves de Um Parque Real / Poema de Cinza / Tristes Cantigas de Amor / A Vida Que Te Dei / Sonetos / Toda a Vida —, e ainda Motivos de Beleza, Cartas Que Me Foram Devolvidas, Cantares, O Livro do Povo, Ódio e Amor, Fátima. Poema do Mundo, e o livro póstumo Ainda Não Se Escreveu. Nas suas 815 páginas, o volume inclui também os poemas escritos para o filme Gado Bravo (1934), de António Lopes Ribeiro.

A magnífica foto da capa, que desconstrói por completo a imagem de dandy associada ao poeta, é da autoria de Mário Novais. 

Numa livraria perto de si a partir do próximo 9 de Novembro.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

A INDIFERENÇA

O que mais impressiona no resultado das eleições brasileiras não são os 57,8 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro. São os 31,5 milhões de abstencionistas, num país onde o voto é obrigatório. Além dos mais de trinta milhões de brasileiros que recusaram votar, outros 11 milhões boicotaram o acto, votando nulo (8,6 milhões) ou em branco (2,4 milhões). Dito de outra forma, 31% dos eleitores inscritos borrifou-se para as eleições.

Agora é esperar para ver. Os 10,7 milhões de votos que separam Bolsonaro (57.797.466 = 55,2%) de Haddad (47.040.859 = 44,8%) ilustram a bipolarização da sociedade brasileira.

Daqui até 1 de Janeiro, data da inauguração presidencial, muita água vai correr sob as pontes.

domingo, 28 de outubro de 2018

BRASIL VIROU

Consumaram-se os piores prognósticos. Com 99% do apuramento feito, Bolsonaro foi eleito Presidente com 55,2% dos votos válidos. Haddad ficou com 44,8%. A ver vamos se daqui a um ano os 57,7 milhões de brasileiros que votaram Bolsonaro estão de cara levantada.

BRASIL EM TRANSE

Há três semanas, 50 milhões de brasileiros votaram em Bolsonaro. O Brasil tem 50 milhões de fascistas? Não precisa. O fascismo português durou 48 anos (1926-1974). Portugal tinha 10 milhões de fascistas?

O fascismo português começou com a ditadura militar, instaurada nove dias após o pronunciamento militar de 28 de Maio de 1926 (Gomes da Costa) que pôs termo à Primeira República. Continuou com a ditadura civil, estabelecida com a eleição de Carmona em Março de 1928. Entrou em velocidade de cruzeiro em Julho de 1932, quando Salazar foi nomeado chefe do VIII Governo da Ditadura. Até que, em Abril de 1933, a entrada em vigor de uma nova Constituição instituiu o Estado Novo. Doravante, Salazar seria Presidente do Conselho, cargo que ocupou até 27 de Setembro de 1968. Marcello Caetano encerrou o capítulo em Abril de 1974.

Sem a Guerra Colonial, que durou 13 anos e mobilizou um milhão e meio de homens, o fascismo português teria acabado em 1974?

Relativizar o que se passa no Brasil é muito perigoso.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

TANCOS

Por que será que toda a gente, em especial o CDS, quer saber quem sabia o quê sobre o encobrimento do Caso Tancos? O natural seria quererem saber (como eu também quero) quem roubou o material de guerra, e para quê. Mais: por que razão só apareceu parte do armamento roubado? O que é feito do resto?

Sem esclarecer o pecado original (o roubo), nunca perceberemos a necessidade do encobrimento.

TRÊS MULHERES


Estreia hoje às 22:40 na RTP esta série de Fernando Vendrell, inspirada nos factos que, entre 1961 e 1973, ligaram Natália Correia, Snu Abecassis e Vera Lagoa.

Criada por Fernando Vendrell e Elsa Garcia, com argumento de Fátima Ribeiro e Luís Alvarães, conta com um extenso elenco de que fazem parte, entre muitos outros, Soraia Chaves (Natália), Victoria Guerra (Snu), Maria João Bastos (Vera Lagoa), Cucha Carvalheiro, João Grosso, Pedro Lamares (Sttau Monteiro), Isac Graça, Vicente Wallenstein, Elmano Sancho (Cesariny), Pedro Carraca, Ana Padrão, Manuel Wiborg, Filipa Areosa, Jorge Vaz Gomes (Ary dos Santos), Hugo Franco, Dmitry Bogomolov (Ievtuchenko), Rui Morrison, Lucinda Loureiro, Afonso Lagarto e Fernando Luís. Treze episódios de 50 minutos cada. A ver vamos.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

CRISTAS

Os pais fundadores do CDS esforçaram-se por colocar o partido ao centro, rigorosamente ao centro, equidistante dos extremos, sublinhava Freitas.

Hoje, Assunção Cristas deu cabo da herança. «Nestas eleições eu não votaria no Brasil», disse com ênfase a líder do CDS. Ou seja, é-lhe indiferente a vitória de Bolsonaro ou Haddad.

Gratos pelo esclarecimento.

FUTUROLOGIA

Faltam três dias para a segunda volta das eleições no Brasil. Vou dizer por antecipação o que me parece vai acontecer se, como tudo indica, Bolsonaro for eleito.

A velocidade das decisões dependerá do score obtido: muito rápidas se for igual ou superior a 60%; mais lentas se inferior a 55%. Mais lentas quer dizer só em 2019.

O Congresso Nacional (constituído pelo Senado Federal e a Câmara de Deputados) será dissolvido.

Neste momento, o PT conta com seis senadores (em 81), sendo o partido com maior número de deputados: 56 dos 513. Não chega para aprovar ou contrariar lei nenhuma, mas Bolsonaro tudo fará para ter o seu Congresso.

O PT será ilegalizado. Só por milagre Dilma e Haddad não terão o mesmo destino de Lula.

Será aprovado um novo Código Penal, com a possível reintrodução da pena de morte.

Os direitos, liberdades e garantias da população vão regredir a 1964, ano em que os militares afastaram João Goulart.

Será revogada toda a legislação relacionada com igualdade de género, direitos LGBTI, aborto e tudo o que cheire a normas progressistas.

Os media vão sentir, forte e feio, limites à liberdade de expressão, novelas da Globo incluídas.

Oxalá me engane. Fica escrito por antecipação para conferir mais tarde.

HOLLINGHURST & LYNCH


Hoje na Sábado escrevo sobre O Caso Sparsholt, do inglês Alan Hollinghurst (n. 1954), que em trinta anos publicou seis romances. O melhor continua a ser o primeiro. O mais recente acaba de ser traduzido: as quinhentas páginas do costume, o nível semântico a que o autor nos habituou, quotidiano homossexual em registo upper class, transgressão moderada, ambientes sofisticados, códigos de casta e, claro, dezenas de personagens. A fórmula não falha. Dividido em cinco capítulos, o livro cobre várias décadas. O título remete para um escândalo fictício, envolvendo David Sparsholt, o pai do protagonista. Tudo começa em Oxford durante o Blitz de 1940. David era um rapaz muito atraente à beira de completar dezoito anos e de ingressar na Royal Air Force. Freddie Green narra essa primeira parte: «havia uma vontade de sublimar e enobrecer o corpo de Sparsholt para lá da realidade, já de si sublime.» O intróito contextualiza a narrativa. Nascido em 1952, Johnny é filho daquele mesmo David que electrizara o college. Retratista e restaurador de antiguidades, o seu percurso ilustra a evolução de costumes na Inglaterra. Após anos de sexo clandestino, tal como seu pai, gozou a libertação: clubes gays, aplicativos móveis para encontros de natureza sexual (como o Grindr), casamento com outro homem, uma filha gerada por doação de esperma a uma amiga lésbica. Hollinghurst regista o ar do tempo com sentido pedagógico. É deveras interessante a forma como transpõe para a vida de Johnny o quotidiano dos amigos que o pai fizera em Oxford. Omite a sida porque foi assunto foi tratado em romance anterior. Londres substitui Oxford, mas o universo social mantém-se: artistas e escritores oriundos da boa sociedade. Após a morte do marido (vítima de cancro da próstata), Johnny aceita retratar, ao jeito de conversation piece, a família de Bella Miserden, uma «loura pragmática» que conhecera por acaso na National Portrait Gallery. Os Miserdens eram novos-ricos ligados à multimédia, o tipo de gente que Johnny não frequentava. Atento às nuances comportamentais, Hollinghurst sugere nexo de causalidade entre a fase depressiva e a aceitação do trabalho. David praticamente desaparece do plot. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Escrevo ainda sobre Espaço Para Sonhar, a biografia de David Lynch (n. 1946) escrita por Kristine Mackenna e pelo biografado. A edição portuguesa descobriu o filão biográfico. Ainda bem. Ela redigiu a biografia, ele acrescentou-lhe páginas de memórias. A solução não é comum, mas resultou. Obra a quatro mãos, portanto. Além de cineasta, Lynch também é actor, músico, pintor, fotógrafo, designer de móveis e autor de um livro sobre meditação transcendental que expõe o modo como aprendeu a controlar a sua própria violência. Ou seja, o mais próximo que hoje encontramos de um homem da Renascença. Para melhor compor o retrato, Kristine Mackenna fez mais de cem entrevistas com actores, agentes, amigos, antigas mulheres (Lynch casou quatro vezes), familiares, músicos e colaboradores. O mais interessante são as revelações sobre o móbil de certos filmes. Por exemplo, Lost Highway não existiria sem o caso O.J. Simpson. O fascínio por sangue é um item revelador. O volume inclui dezenas de fotografias, filmografia, cronologia de exposições, bibliografia, notas, e o indispensável índice remissivo. Uma edição cuidada. Quatro estrelas. Publicou a Elsinore.

PÓS-DEMOCRACIA


Quem quer que tenha enviado os engenhos explosivos e as cartas com pó branco (antraz?) para as residências de Hillary e Bill Clinton, Obama e família, do antigo procurador-geral Eric Holder, de John Brennan, antigo director da CIA, das congressistas democratas Debbie Wasserman Schultz e Maxine Waters, da redacção da CNN em Nova Iorque, do magnata George Soros (acusado pelos Republicanos de financiar a campanha contra o juiz Brett Kavanaugh), mas também, soube-se entretanto, para Joe Biden, vice de Obama, sabia que apenas os pacotes dirigidos à CNN e a Soros chegariam ao destino. Todos os outros fazem parte de uma lista de personalidades cujo correio é verificado antes de ser entregue.

O objectivo era provocar alarme, e isso foi conseguido com o pacote que chegou à CNN. O edifício teve de ser evacuado, o recado deu a volta ao mundo, Trump viu-se obrigado a comentar o assunto numa sessão da Casa Branca dedicada ao combate ao tráfico de opiáceos, Hillary fez um statement, Andrew Cuomo, governador do Estado de Nova Iorque, e Bill de Blasio, mayor da cidade, deram uma conferência de imprensa a repudiar o sucedido.

A ver vamos o resultado que isto tudo dá.

Na imagem, o engenho enviado à CNN.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

ERDOGAN & KHASHOGGI

Hoje mesmo, dia em que começou a cimeira económica de Riade (versão superlativa do Forum de Davos), Erdogan foi ao Parlamento turco falar sobre o assassinato de Jamal Khashoggi:

«Os serviços de segurança turcos têm provas de que foi um assassinato político premeditado, meticulosamente planeado, executado de forma selvagem. [...] Não duvido da sinceridade do rei Salman. Mas é necessária uma investigação independente, com a participação de vários países. [...] A Turquia e o mundo só ficarão satisfeitos quando os responsáveis superiores e todos os intervenientes directos forem responsabilizados

Não passou despercebida a vénia ao rei saudita. Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro que governa o reino, nunca foi mencionado, mas já toda a gente percebeu que foi ele o cérebro da operação.

É extraordinário ver o Presidente turco tão empenhado no esclarecimento da morte de Khashoggi. Porque, desde a tentativa de golpe de Estado em Julho de 2016, a Turquia mantém presos mais de cem jornalistas (seis foram condenados a prisão perpétua), encerrou jornais, e tem controlo férreo sobre os media e as redes sociais. A explicação de que seria amigo de Khashoggi é curta.

Entretanto, vários países (os Estados Unidos, a França, a Alemanha, a Holanda e o Reino Unido) cancelaram a sua participação na cimeira económica de Riade, uma iniciativa do príncipe Mohammed bin Salman.

IMPORTA-SE DE REPETIR?

Preocupados com o Brasil? Talvez seja altura de nos preocuparmos com Portugal.

A Associação Sócio-Profissional Independente da Guarda Nacional Republicana afirmou, em comunicado público, ou seja, em documento oficial, que «os criminosos [...] não são merecedores do mesmo respeito e consideração, por parte do Estado e da comunidade, atribuídos ao cidadão comum.» Não se trata de uma opinião isolada. Trata-se de um comunicado da GNR.

Vivemos num Estado de Direito? A sério?