quinta-feira, 22 de agosto de 2019

VERÃO VEZES SETE


Verão vezes sete hoje na Sábado.

Ainda me lembro do tempo em que, nos inquéritos de Verão da imprensa, os happy few da cena pública afirmavam levar Adorno e Wittgenstein para reler na praia (reliam sempre). Mantendo o prazer da leitura, prefiro descer o patamar sem perda de qualidade.

Comecemos pela selecção das crónicas que Elena Ferrante (n. 1943) publicou no Guardian, compiladas na colectânea A Invenção Ocasional, ilustrada por Andrea Ucini. São 51 textos publicados ao longo de um ano, sobre arte, doença, religião, escrita feminina, populismo — designadamente o de Salvini, Le Pen, Trump, Orbán, o Movimento Cinquestelle —, tabagismo, ficções, homens e sexo, Tarkovsky versus Kubrick, talento e outros temas: «O futuro das nossas obras é ainda mais obscuro do que o nosso.» Ideal para férias. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

Saltar para Pandemia, do americano Robin Cook (n. 1940), significa mudar de registo. Cook faz parte da extensa genealogia de médicos romancistas, e o livro pertence à série centrada nas figuras de Jack Stapleton, legista num hospital de Nova Iorque, e Laurie Montgomery, sua mulher. Um thriller sobre tráfico de órgãos humanos e crimes relacionados com biotecnologia genética a partir da edição de genes CRISPR/CAS9. Longe de ser exaltante, mas os fiéis são muitos. Duas estrelas. Publicou a Bertrand.

Para leitores exigentes, Tríptico da Salvação, de Mário Cláudio (n. 1941), traz de volta um autor que aposta com sageza no virtuosismo da prosa. Um tríptico alusivo à Crucificação, Deposição e Ressurreição de Cristo serve de pretexto ao plot que opõe o amanuense Hans Kunsperger a Lucas Cranach (o Velho), o pintor que privou com Lutero. Em suma, uma biografia romanceada, género em que Mário Cláudio é exímio, quer no rigor histórico, quer no apuro da linguagem. Cinco estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Nos antípodas do género, Um Inverno Sete Sepulturas, do dinamarquês Christoffer Petersen. Vá-se lá saber porquê, a edição portuguesa inverteu a ordem do título. Petersen é mais um nome a juntar à cada vez maior lista de autores nórdicos de romances policiais. O cenário e a fauna da costa leste da Gronelândia não serão os mais aliciantes, mas a personagem de David Maratse, um ex-polícia presente em livros anteriores, corresponde ao padrão-tipo. Quem leu À Sombra da Montanha recorda-se de alguns episódios. Três estrelas. Publicou a Quetzal.

Os apreciadores de contos devem escolher o modernista japonês Ryūnosuke Akutagawa (1892-1927), de quem agora foi traduzida a colectânea Rashómon e Outras Histórias, que reúne alguns dos seus melhores textos de ficção. Antes de suicidar-se aos 35 anos, Akutagawa traduziu Yeats e escreveu cerca de duzentos contos. Traduzido do inglês, este volume reúne dezoito, o primeiro dos quais (e, não por acaso, titular) foi adaptado ao cinema por Akira Kurosawa, levando o realizador a ganhar o Leão de Ouro de Veneza em 1951 e, no ano seguinte, um Óscar honorário. Para todos os efeitos, Akutagawa é um clássico. Quatro estrelas. Publicou a Cavalo de Ferro.

Voltando a romances, o australiano Peter Carey (n. 1943), há décadas radicado em Nova Iorque, aborda em Longe de Casa a questão sempre melindrosa das identidades étnicas. Tudo se passa nos anos 1950, na Austrália, tendo Irene Bobs e Willie Bachhuber como protagonistas de um vertiginoso on the road contado a duas vozes. O livro é um pretexto para retratar os complexos rácicos na Austrália do pós-guerra, e Carey faz isso muito bem, sem as “cautelas” de obras anteriores. Cinco estrelas. Publicou a Sextante.

Last but not least, com o intuito de assinalar 50 anos de obra literária, José Amaro Dionísio (n. 1947) reuniu em volume único — O Nome do Mundo — cinco livros publicados entre 1978 e 2008, aos quais juntou três núcleos autónomos, de prosa e textos poéticos, um deles inédito. Ficaram de fora as reportagens que o notabilizaram, como por exemplo uma sobre a guerra colonial em Moçambique e outra sobre a Amazónia. Todo o Alfabeto dessa Alegria (1985) continua sendo a magnum opus deste autor avesso às convenções. Quem não conhece, devia. Quatro estrelas. Publicou a Companhia das Ilhas.

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