segunda-feira, 17 de setembro de 2018

BOWLES & SHEPARD


Na edição desta semana da Sábado escrevo sobre Deixa a Chuva Cair, o segundo romance do americano Paul Bowles (1910-1999). Autor de uma obra extensa, Bowles sobrevive como nome de culto. O facto de ter-se expatriado em Tânger logo após a Segunda Guerra Mundial cimentou a lenda do escritor “maldito”. Escreveu quinze colectâneas de contos, seis romances, uma novela, cinco livros de poesia, dois de viagem e uma autobiografia em quatro volumes, mas, na realidade, foram os incidentes biográficos que fixaram o interesse e a avaliação dos contemporâneos. Quantos dos seus leitores sabem que foi um notável compositor de música erudita e de scores para a Broadway? Sem o halo de transgressão que marcou o exílio marroquino, como teria sido a recepção crítica? Além de compositor, ficcionista, poeta e memorialista, Bowles foi tradutor de Sartre e Genet, mas também dos contos orais do pintor Mohammed Mrabet. Metáfora omnipresente, o céu. A epígrafe do Macbeth, de Shakespeare, dá o tiro de partida. O plot ilumina os primeiros tempos de Bowles em Marrocos. Nas suas linhas gerais, a história de Dyar, o bancário que troca Manhattan («Qualquer outra vida seria melhor do que esta») pelos expedientes da zona internacional de Tânger, assenta no impulso que levou Bowles a deixar a América. Nova vida: outra gente, novos padrões morais, a mesma solidão. Dyar é um homem enredado nas contradições do desconhecido e numa sucessão de azares. Bowles teve um percurso diferente, sabemos que sim, mas não é das minudências do quotidiano que falamos. O conflito entre despaisamento e a nova realidade assenta na experiência do autor. É curiosa a insistência num cenário sombrio, por vezes macabro, por parte de alguém que escolheu viver ali mais de meio século. Se, em romances posteriores — A Casa da Aranha é um bom exemplo —, Bowles meteu na ficção acontecimentos políticos concretos (a colonização, o exílio na Córsega imposto pelos franceses ao sultão Maomé V, o avanço da cultura pan-islâmica, o nacionalismo árabe, os dogmas do Islamismo), em Deixa a Chuva Cair é a própria circunstância do autor que está em pauta. Três estrelas. Publicou a Quetzal.

Escrevo ainda sobre a novela Espião na Primeira Pessoa, o livro póstumo de Sam Shepard (1943-2017). Conhecido sobretudo como actor de cinema, Shepard é autor de mais de cinquenta peças de teatro, algumas das quais encenou e interpretou, dezenas de contos e um romance. Vítima de esclerose lateral amiotrófica, Shepard foi obrigado a ditar parte deste livro derradeiro, constituído por 37 capítulos muito breves. Patti Smith, amiga de longa data, editou a versão final da obra. Texto de despedida, narra o ocaso de um homem que passa os dias a ler, num alpendre, enquanto come queijo e bolachas e bebe chá gelado. Um vizinho espia a progressão da doença. Por trás da tensa arquitectura discursiva, é nítida a mão do dramaturgo que sempre foi. (Em 1979, Shepard ganhou o Pulitzer com a peça Buried Child.) Tentativa de captura do tempo, «Como uma crosta muito estaladiça, muito pequena, que se arranha. Está um pouco turvo, este tempo. Não está muito claro para mim.» Sem escapatória: Espião na Primeira Pessoa é o epitáfio deste narrador anónimo. Notável. Cinco estrelas. Publicou a Quetzal.